Entrou no prédio da editora com a convicção de que, desta vez, aceitariam seu manuscrito. Ficava no quinto andar; a responsável pelo setor de literatura adulta era uma senhora chamada Havana.
‘Será que ela me põe para fora, sem nem me ouvir, na hora em que perceber que eu escrevi tudo a mão?’, ele se perguntou. E, como jamais dava respostas a si mesmo, deixou no ar mais esta inquietação.
Apesar dos computadores e modernidades afins, preferia mesmo escrever do jeito antigo, com uma caneta Parker 51 que herdara do pai. Todos os amigos – sem nenhuma exceção – tentavam fazê-lo abraçar o que chamavam de bom senso. Mas Augusto T. da S. era rijo de raciocínio. Uma das provas era o seu próprio nome, que insistia em escrever desse jeito.
O encontro com a editora fora acertado a partir de uma poderosa amizade de família, alguém extremamente ligado ao próprio governador. Fora uma velha tia de Augusto que, um pouco a contragosto, mas premida por um lobby familiar, acabara entrando em contato com aquela pessoa. Afinal, alguém precisava fazer alguma coisa pelo “maluquinho”, como era tratado por todos, com boa dose de carinho.
Como costumava fazer, Augusto viu o nome de Havana grudado na porta, numa placa dourada de mau gosto, e não deu satisfação para a jovem atendente, na mesinha em frente à sala. A menina deu um salto, tentando interceptar a passagem dele, mas impossível: Augusto ostentava um metro e noventa e, apesar de afeito às malhações, andava meio largado, ultimamente, e passara dos cento e dez quilos.
“Meu senhor, não pode entrar! Um momento!”
Ele, contrafeito, parou exatamente na porta, que estava entreaberta.
“Como não posso? Marquei às dez da manhã e estou até um pouco atrasado.”
“Mas, meu senhor”, insistiu a menina, quase desesperada, tentando puxá-lo pelo braço para longe da porta, “dona Havana ainda não falou pro senhor entrar…”
Augusto ficou imóvel, de repente, olhando fixo para a garota.
“Olhe, vamos esquecer tudo. O incidente, tudo. Diga-me, sem pensar, sem usar a razão, por que você me chama de ‘meu senhor’ e não simplesmente de ‘senhor’? Por que, hem? Responda imediatamente!”
A menina, muda.
“Ah, assim não é possível!”, ele falou alto, e o pessoal que esperava o elevador ficou olhando, assustado. “Você pensou, censurou, usou a maldita razão – e me deixou sem resposta! Deve haver algum motivo antropológico muito interessante para o ‘meu senhor’… qual seria?”
Esqueceu tudo de novo e passou a coçar o queixo, ali mesmo, com aquela pasta enorme debaixo do braço. Vestia uma calça de brim que já deveria ter sido aposentada, uma camisa que já fora azul-claro e tênis que pareciam saídos de uma pelada no barro. Tinha quarenta anos, mas se dissesse que já fizera sessenta, ninguém duvidaria.
“Esse ‘meu senhor’ talvez seja uma forma portuguesa de adulação servil, e não memória do escravagismo, como, imagino, o senhor (sem o meu) possa ponderar…”
A voz que vinha em socorro da garota era a de dona Havana, parada na porta.
“Oi, tudo bem?”, perguntou Augusto, meio distraído, dirigindo-se à mulher. Mas logo voltou ao assunto: “Não pensei nada disso: queria saber por que essa mocinha me considera seu, de alguma forma…”
“Não é possível que o senhor tenha pensado nisso. É muito óbvio.”
“O maior problema dos intelectuais é que não levam o óbvio em conta.”
“Sobrou pra mim”, riu a mulher. “Bem, seu Augusto, o senhor pode entrar à vontade. E finalmente.”
Ele sorriu para a editora, com muita sinceridade: achou-a simpática. Com dois passos chegou à cadeira à frente da mesa atulhada de papéis. Ao lado, um computador.
“A senhora usa esta… coisa?”
“O tempo todo.”
“Então por que sua mesa tem tanto papel?”
Ela não respondeu, de pronto. Saiu-se pela tangente.
“Os papéis, pelo que vejo, incomodam o senhor.”
“Não, não, o que incomoda é a desfaçatez de certas respostas, como esta última sua.”
“Senhor Augusto” – a editora que, de fato, já passara dos sessenta anos, respirou fundo –, “é verdade que o senhor veio me oferecer um original e está tentando atrair minha simpatia?”
“Se a sua simpatia for tão explícita como sua ironia, é.”
De repente, ele começou a gargalhar. Gargalhou sem, antes, fazer estágio no riso. Foi mesmo de súbito, como um ator consagrado o faria para ganhar tempo. Dona Havana sentiu-me muito incomodada.
“É tudo brincadeira, La Habana”, ele conseguiu dizer, em meio a resíduos de gargalhadas. A partir daí, a mulher não mudou a expressão desordenada do rosto. Ouviu toda a história dele: que escrevia desde criança, que se sentia um experimentalista (“fiz um capítulo inteiro sem parágrafos, vírgulas e letras maiúsculas”, exemplificou) e que gostava fundamentalmente de chocar o leitor. Aí quase jogou a grande pasta de originais no colo da editora. Primeiro desculpou-se de tê-los escrito a mão.
“Este fato, dito no prefácio, causará uma grande sensação!”, ponderou Augusto.
A mulher conseguiu articular alguma coisa:
“O senhor pode imaginar o número de pessoas que deveríamos empregar para administrar sua obra?”
“Nenhuma.”
“Como, nenhuma?”
“Tsss, tsss, e sou eu que não entendo de informática… Há software para isso, La Habana. Ele lê a letra manuscrita e a transforma em letra virtual.”
“Ah, ouvi falar. Mas dizem que não é tão eficiente assim…”
“Se quiser arrumo, mas só de contrabando.”
A editora acabou usando sua saída estratégica no trato com escritores enlouquecidos, bêbados ou drogados, ou as três desgraças juntas. Disse-lhe: “o livro seguirá para um conselho de leitores; depois veremos como anda nossa programação e…” À medida que ia falando, a expressão do rosto de Augusto se transformava, tornava-se bem-aventurada, como se ele ouvisse uma oração.
“Estou impressionado”, disse ele, tão logo ela encerrou a ladainha. “Vocês, editores, usam o mesmo texto, falado ou escrito, para despachar a gente. Tudo o que a senhora me disse eu já li nas cartas dos editores. Acho que dá até um bom artigo para jornal.”
“Seu Augusto”, interrompeu ela, quase mordendo o lábio inferior. “O senhor não me falou no título da sua obra.”
“Rabebom.”
“Rabebom? O que é isso?”
“O que o som indica. Ou seja: ‘rabo é bom’.”
“O senhor se refere à região caudal dos irracionais, ou ao coito anal mesmo?”, ela perguntou, próxima de uma síncope.
“Ao coito anal. Sabe, é uma…”
A editora levantou-se e pareceu muito alta.
“O senhor não vai discorrer, agora, sobre coito anal, não é, seu Augusto?”
O escritor olhou para ela e se levantou devagar. Aproximou os braços imensos para apanhar os manuscritos e dona Havana, de reflexo, deu dois passos para trás. Na porta, a atendente olhava a cena com um rosto de dúvidas.
Ele parecia abalado por uma depressão repentina. Chegou até a porta, mas ainda se virou para a executiva, ali imóvel, de pé, jogando ódio sobre ele, usando seu olhar duro.
“Acho ‘Rabebom’, assim, tudo junto, um título genial. Melhor do que ‘Deus é má’, meu livro de reflexões sobre o universo gay. Por falar nisso, La Habana, a senhora me perdoe, mas acho que a senhora se transformou, ao longo do tempo, numa pessoa perturbadoramente fálica. É uma pena.”
Antes de entrar no elevador, de forma abrupta, jogou o manuscrito na lixeira ao lado. Mas a pasta não coube, acabou se abrindo e as folhas se espalharam por todo o andar. Como se fosse uma maldição.
Dona Havana conseguiu sair da rigidez muscular, veio até o pequeno saguão, abaixou-se e começou a recolher aquelas folhas. Virou-se para a atendente e comentou que, pensando bem, “Rabebom” poderia vir a ser, realmente, um grande título. De um best-seller, quem sabe?
Do livro “Allegro” – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003
Por acaso o personagem não seria o idealizador do famoso grupo literário kunkukaista, originado do apócrifo “Manifesto do Kukunka”? Leva jeito.
Não que eu saiba, Wander. Mas juro a você que conheci figuras bem parecidas… Aliás, você também. São do nosso tempo!
“Kukumká” era uma escuderia (lembra disso?) em minha aldeia natal, São Miguel Paulista, há uns… bom, foi no século passado.
Vagamente, caro mio. Hoje poderia ser até nome de templo.
Isso não é exatamente ficção. Conheci pessoas exatamente assim, em Caruaru.
Também em São Paulo, Tiné. E nós dois as conhecemos na mesma época; possivelmente, estivemos juntos com elas em algum ágape.