Atravessara a cidade, subira umas dez ladeiras, engatando primeira-segunda, primeira-segunda, embrenhando-se naquela Vila Péricles de sobradinhos iguais; superara até o medo de ser assaltado só para fazer a cachorra cruzar. “Realmente sou uma besta”, confidenciou à linda pastor belga ao seu lado. Com seu olhar piedoso, ela pareceu concordar. E ele, falando sozinho, alto: “É aqui, número oito… mas que prédio esquisito… três andares…”
Desceu da picape do ano, enorme, importada. “Ainda vão me pegar aqui”, pensou, dando uns tapinhas na cabeça de Gini, “mas você me defende, não é, minha paixão?” Gini mais uma vez olhou para ele com piedade e mexeu o corpo para descer do carro. Não havia ninguém na rua. Também, num domingo à tarde…
“Ô de casa!”, ele gritou, com uma voz máscula, meio agressiva, até. Um recado para o provável assaltante.
“Ê, ê!”, respondeu uma voz de mulher, mais agressiva ainda. “Ê, meu senhor! Tô aqui!”
Olhou pra cima e só viu uma cabeça grisalha despontando da varanda do último andar. Rosto redondo. Quem seria? Onde estaria o sujeito que marcou com ele, o dono do reprodutor?
“O senhor veio é cruzar, né mesmo?”, perguntou a cabeça lá em cima, esforçando-se para aparecer mais. Desconcertado, ele olhou para Gini, ao seu lado, e achou melhor não responder “e o que é que a senhora acha?” Nada de ironias. Segundo o pessoal do Kennel, naquele lugar horroroso vivia o mais belo pastor belga gronendael da cidade. Bonito e prolífero: com ele, as cadelas pariam dez, doze filhotes.
“O Hermano não está?”, perguntou à cabeça longínqua. “Marquei com ele aqui…”
“Meu filho é um irresponsável, viajou”, disse a mulher, sem hesitação. “Olhe, dez minutos atrás eu já sabia que o senhor estava chegando. O louco ficou todo alvoroçado, andando de um lado para outro… assim, resfolegando, nervoso… é um louco…”
‘Louco? Será que ela se referia mesmo ao reprodutor?’
“Mas é melhor o senhor subir, não é, meu senhor? Senão, não acontece nada… É só empurrar o portão…”
Ele foi subindo, puxando Gini pela coleira. Degrau que não acabava mais. Perdeu o fôlego. “Preciso aumentar o tempo do personal training”, ia pensando, até que um vulto negro, imenso, deu um salto à sua frente, rosnando como a Besta do Apocalipse. O coração, que já saltava de cansaço, agora disparou.
“Minha senhora, segure esse bicho!”, implorou, enquanto tentava deter Gini, que disparara escada abaixo. Perdeu o equilíbrio, agarrou-se na mureta, quase rolou pela escada. Levou um tempo para se refazer.
“Calma, meu senhor, é que esse louco é maníaco, também. Olhou pra sua menina e já ficou empolgado… Sai pra lá, tarado! Cisca daqui, doidão!”
O cachorro, belíssimo, obedeceu com o rabo entre as pernas. Aí ele examinou melhor a mulher. Baixinha, uns sessenta e poucos anos, avental, sandálias, jeito de mamma italiana. Havia nela uma energia poderosa, autoritária, mas legítima.
“Pode entrar, meu senhor, pode sentar. Não leva muito tempo…” Olhou fixamente para a tímida Gini. “É a primeira vez dela?” Ele fez que sim com a cabeça. “Mas como esse louco tem sorte!”, brandiu, olhando para o acuado pastor belga e depois para o homem. “Sabe, meu senhor, a maioria das meninas que vêm aqui é virgem! Mas pode deixar os dois aí soltos, na sala mesmo, sem problema nenhum… Primeiro é aquela cachorrada, quer não quer, morde não morde, depois o louco vai lá, e crau!”
Ficou por ali, tentando encontrar alguma coisa para olhar, enquanto a mamma observava com ar de reprovação o pega amoroso que já começara. Gini, sempre muito sensível, parecia sofrer com a iniciação brutal. Seus olhos diziam isso.
“Sabe”, disse a mamma, “eu fico olhando assim o senhor, todo riquinho, cheiroso, cabelinho com gumex, cafetinando cachorra num domingo de tarde. Credo! Mas tem doido pra tudo e gosto não se discute… Vamos lá, tarado, acaba logo com isso!”
O homem teve a nítida impressão de que alguma coisa muito profunda estava errada com sua própria vida. Sentiu-se, mesmo, um miserável.
Do livro “Allegro” – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003.
Fernandinho, quando li o título “Depressão”, pensei: “Ih, eu hoje não tô lá muito legal e Fernandinho ainda me manda um conto com esse título?” Ia deixando pra depois, mas resolvi ler logo. Nossa, como me diverti! ARRETADO!
Nunca confie em mim, Dodora… (Escrevendo, claro!)