(Minha mulher sentada na cadeira de balanço, a mesma em que eu morri do coração. Dunga, à sua frente, observando-a com o cansaço habitual, a língua pingando saliva. Minha mulher roda nas mãos o meu revólver calibre 22, cano médio. Ela está muito magra, sem peitos, e a perna esquerda inchada de filariose. De vez em quando levanta os olhos para o cachorro.)
“Dunga, meu filho, cachorrinho bom… você comeu hoje? Foi pouco, não foi, Dunga? Mas o que eu posso fazer? O instituto está pagando uma miséria… seu tio Eufrásio, lá na Bahia, ninguém sabe dele e mesmo que eu soubesse não ia pedir nada, a gente morre de fome, Dunga, mas não pede nada a ninguém… a ninguém, está ouvindo?”
(Minha mulher chora. Com um lenço, que é mais um trapo, bordado em ponto-de-cruz, enxuga os olhos, calmamente. Funga.)
“Não posso me esquecer dele. Dunga. Já fiz tudo: não posso. Você ainda se lembra dele? Claro que se lembra vocês dois eram tão amigos…”
(Levanta-se com dificuldade, põe o revólver em cima da mesinha ao lado, vai para o nosso quarto. O cachorro lambe as patas dianteiras. Ela volta com uma fantasia colorida, amarela, vermelha e azul, de cetim.)
“Você se lembra disso, Dunga? Foi quando ele tinha um ano e meio, só um ano e meio, você não era nascido, agora você está velho, seus dentes estão caindo… Mas você se lembra disso? Foi no carnaval de 1944, a gente estava nesse tempo na Boa Vista… não se lembra não, cachorrinho? Guardei isso mais de quinze anos…”
“Ele morreu tão moço… meu irmão Alberto morreu com vinte, da Espanhola. Dunga, você sabe o que é a gente criar um filho único todo esse tempo, fazer tudo por ele e agora um satanás matá-lo sem nenhuma piedade, sem pensar nesta velha acabada? Mas pra que o satanás fez isso, Dunga? Você veja: ele podia ter dado uma surra no menino, podia ter dado parte à polícia, ter feito qualquer coisa, mas matar o meu filho… o único… o meu querido…”
(Minha mulher volta a usar o trapo, agora soluçando, sacudindo os ombros. O cão vai saindo, devagar.)
“Dunga, aqui!”
(Ele volta apressado, procura uma posição mais cômoda, boceja gemendo fino.)
“Cachorrinho… preciso falar com você, preciso falar com alguém, você não entende? Você não entende que eu não posso viver só? Se Jerônimo estivesse vivo ele teria se vingado, tenho certeza! Não era homem para aguentar que lhe matassem o filho e ficar sem fazer nada. Você não gostava muito de Jerônimo, não era, Dunga? Eu sei, ele batia em você, às vezes sem necessidade, mas não era ruim, você sabe que ele não era ruim, tinha só os estouros, depois se desmanchava em mil desculpas… Olhe Dunga, vou lhe dizer uma coisa, mas fique entre nós; é isto: Jerônimo tinha complexo! Sabe por quê? Porque eu era preparada, tinha curso, falava bem francês, tocava piano… Você sabe quem papai era não sabe? O Desembargador Braga, homem formado, ilustre! Se ele estivesse vivo também nada disso estaria acontecendo… Não digo que ele tivesse mandando matar o escuro, não era homem para isso, era um homem teórico, escrevia bem, era muito lírico. Mas ele, mesmo com diplomacia, não deixaria impune aquele diabo, como os advogados querem fazer. O último jornal já disse que é quase certa a absolvição do escuro. Isso é uma injustiça. Dunga, que clama aos céus…”
(Minha mulher brinca com a arma, rodando o tambor, pondo e repondo balas, examinando-as demoradamente. O cachorro continua imóvel aos seus pés, o focinho apoiado no chão.)
“Dunga, às vezes penso, quer dizer, eu não só penso como tenho certeza: a culpada disso tudo foi aquela menina, irmã do escuro. Aquela triste provocou isso tudo, cachorrinho, a culpada foi ela, pode crer. Ninguém a chamava prá cá. Outra coisa: pros dez anos que ela tinha, era muito sabida. Eu sabia o que ela falava com Maria, a lavadeira, coisas que com vinte anos eu nem sequer pensava, coisas horríveis! Dunga, você não tem assim a impressão de que foi ela que provocou o meu querido? Ela só tinha dez anos, mas com um corpo de mulher, quase. Os seios já estavam pontudos e sabida como era… Você repare, ela mesma é que marcava a hora em que meu querido estava em casa para vir mexer com ele, brincar, naquele agarramento… Olhe, era ela mesma que vivia dando beijo nele; mesmo quando ele estava estudando, ela ia em cima, em cima… Você sabe o que é homem, não é, Dunga? O meu querido não devia ter feito aquilo, foi errado, eu reconheço, mas homem é assim… Até seu Jerônimo não andou se enfeitando praquela empregada que a gente teve na Rua Imperial, aquela menina de quinze anos? Agora, por quê? Porque ela mexia, provocava! Olhe, Dunga, homem é uma raça ruim, mas mulher… hum… mulher é uma desgraça! Eu sou mulher e posso falar sentada de cadeira.”
(Os dois imóveis: ele deitado no chão, ela fixando os olhos nos bibelôs sobre a cristaleira, num êxtase.)
“Sabe de que eu me lembrei agora mesmo, Dunga? Da vez que aquele escuro veio aqui em casa, a primeira vez, você latiu… se lembra? Ele chegou com aqueles dentes de cavalo, atrás da menina. Ele disse: Gracinha dá muito trabalho aqui, não e mesmo? Ela gosta daqui, sabe, gosta muito da senhora, do rapaz…”
“Meu querido tratava o escuro tão bem, tão delicado que ele era, o meu querido. Convidou o escuro para aparecer de vez em quando… Ah, meu Deus, por que ele foi fazer aquilo com a menina, por quê? Mas também não precisava matar, não era para matar o menino. Ele trabalhava tanto, estudava à noite, tinha só aquela idade, um futuro pela frente, não era nenhum gênio, mas era esforçado, lia muito, não precisava matá-lo, Dunga… Lá no Riacho das Almas uma menina casou com onze anos… Pronto!”
“Se esperava mais um ou dois anos e ele então casava com ela. Está certo que ele violentou… Ela sofreu um pouquinho, esteve no pronto-socorro, mas voltou no mesmo dia, direto para casa e está boazinha por aí, andando, correndo… Quando eu vejo aquela triste passar por aqui, Dunga, me dá vontade de morrer, de matar todo mundo, de acabar logo com essa angústia… Você sabe quando é que eu vou receber o dinheiro miserável do Instituto? Daqui a cinco dias! Daqui até lá a gente tem de passar fome, viu, Dunga? Fome! Estou com cuidado em você, velhinho, você está bem velho, mas vá aguentando…”
(Minha mulher leva a fantasia de volta ao quarto, acaricia o cetim desbotado e volta com um álbum grosso de fotografias, escrito na capa: Meu Filho.)
“Aqui, Dunga, ele com dois anos, eu, de vestido branco, Jerônimo, está sério aqui, olhe, Ivaldo, Norma, Madalena, olha que bonitinho o meu querido, gordinho nessa época… olhe outra, não, aqui é só Jerônimo com a farda da Polícia Militar, prá cá, aqui papai e mamãe, olha você aqui, Dunga, novinho… a casa da Boa Vista, Ari, aquele amigo do meu querido, Zilma, Ivaldo de novo, mamãe… acho que o retrato que ele tirou comigo está solto aqui atrás…”
(Folheia avidamente o álbum até descobrir um postal entre as últimas páginas, solto. A segura com as mãos trêmulas e volta a chorar: fino, pausado, como uma criança. O cão levanta o focinho curto, estica as patas, espreguiçando-se.)
“Ele e eu aqui, Dunga. Estava mais magrinho, foi mesmo no dia em que fez dezessete. Foi lá no fundo do quintal que Ari bateu a fotografia. Me lembro que ele até lhe chamou para você posar com a gente, mas você não quis, era a família toda… Dunga! Você também é da família, é cria da casa! Oh, meu Deus, não pode ser verdade que tenham matado o meu querido. E eu nem pude vê-lo no caixão, mas você viu, Dunga. Ele estava diferente? As facadas foram no pulmão, por trás, deve ter doído muito… E eu não pude ver por causa da crise de nervos. Desde que o meu querido morreu, meus nervos ficaram arrasados, também não sei como não morri. Você sentiu, não foi, Dunga? Depois me contaram que você uivou a noite toda. Olhe, cachorrinho, eu e você não estamos muito longe da morte, não. Que me interessa mais viver? Pra quê? Não era para matar o meu querido, não era. Ele depois se casava com a menina, só esperava que ela ficasse mais velha. Também não foi tão grave assim. Disseram que ela sangrou muito, demais, eu é que não acredito, já era quase moça feita, meu filho também não era um… anormal. Eu sei disso. Não era mãe dele, não o via nu? Se dona Eunice ouvisse o que eu estou dizendo agora, nossa, ficaria escandalizada! Ah, gente imbecil, sem educação, sem cultura, ainda bem que tirei aquele curso, hoje ninguém diz, assim neste estado, velha, magra, doente, uma perna aleijada, ninguém sabe o que eu sei, o que aprendi, o que li, quando era moça, até a educação sexual fui eu quem dei ao meu querido, Dunga. Quando ele começou com as poluções noturnas, ficou assustado, eu expliquei a ele, falei: existem as poluções brancas, que são aquelas que vêm sem os sonhos eróticos; e as outras, como é mesmo? Como é o nome… polução branca e … não, minha memória está ruim, era boa, quando moça…”
(Mais uma vez minha mulher levanta-se da cadeira de balanço. Põe o álbum e o revólver carregado sobre a cristaleira. Arrasta-se até o quarto de novo, volta com uma toalha de mesa, amarela, de plástico. Olha para o teto: é casa antiga, de taipa, estropiada. O cachorro fica se esticando no chão, enfadado. E ela, de repente, faz uns gestos bruscos, espalha a toalha sobre a mesa e, abrindo a cristaleira, vai retirando xícaras, descansos, pratos, enquanto cantarola avé, avé, avé Maria.)
“Vou colocar a mesa como sempre, Dunga. Às vezes eu me pergunto se isso é um sonho, uma coisa que não aconteceu, um pesadelo. Você sabe, Dunga, passo a noite toda acordada, ouvindo o portão ranger, assim mesmo quando no tempo do colégio em que ele voltava tarde… Ia tão bem no trabalho, eu falei com o chefe, ele me disse: ‘o rapaz é bom, dona, pode ir longe, não se preocupe com ele’. Um advogado muito simpático, um homem fino como papai era.”
“São essas coisas que a gente não quer lembrar e não tem jeito de esquecer. Ficam martelando, batendo na cabeça, azucrinando… O que aconteceu, por umas certas coisas, eu peguei. Olhe que eu não sou mulher ignorante, fiz curso, cachorrinho, se estou neste bairro miserável, neste chiqueiro de casa é porque não tive sorte, Jerônimo não teve sorte, mas o meu querido, se estivesse vivo, tenho certeza: ele ia me tirar daqui logo, mesmo antes de se formar em engenheiro, a vontade dele… Pois é, Dunga, eu não sou burra não. Por umas certas coisinhas eu peguei tudo. A menina deve ter estado aqui no domingo em que fui a casa de dona Rita, só estava você em casa e o meu querido, não foi? Não canso de dizer que ela teve culpa também. Ficava em cima, em cima… ela deve ter feito alguma coisa mais séria e ele ter perdido a cabeça; aí, então… E o resto… quando ele viu que ela sangrava um bocado, ele quis dar um jeito, não deu, então ela deve ter gritado, sim, foi isso, ela gritou e ele correu pra rua, os vizinhos acudiram, avisaram o irmão dela, aquele escuro podre, então ele foi atrás do menino e lá perto da padaria meteu a faca nele, pelas costas, na correria, duas facadas vazando o pulmão, deve ter doído muito. E da dor ele não me falou nada pra não me magoar mais.”
“Sim, cachorrinho, sabe que o meu querido falou comigo? Ah, eu vou lhe contar! Eu nunca me meti em espiritismo, isso é coisa pra gente de baixa posição social, mas quando a carioca me falou que eu podia conversar com meu querido, por meio do espiritismo, ah, Dunga, eu não refleti um segundo. Sabe onde é? É uma casinha da Torre, perto da igreja. Uma mulher chamada Rosa, uma médium, amiga lá da carioca, ela se concentrou, rezou umas orações e depois se mexeu assim… estrebuchando, e aí disse:
‘Mãezinha… Mãezinha…’
Eu fiquei sem jeito, fiquei muda. Então a carioca bateu no meu ombro por trás: ‘É ele! É ele!’ Aí eu perguntei quase chorando, cachorrinho: ‘meu filho, você está aqui?’ Aí ele disse pela voz da mulher: ‘eu estou bem, mãezinha, estou livre, reze muito por mim, para eu ficar melhor, não foi por gosto que eu fiz aquilo, mãezinha…’ Aí, Dunga, eu já suportava mais. Perguntei, chorando ainda: ‘doeu muito, meu filho, doeu muito, as facadas?’ Eu agora digo, ele não quis me angustiar, até bom ele foi nisso: ‘não, mãezinha, não doeu quase nada…’ ”
(Ela para, uma faca lhe escorrega das mãos, cai sobre um prato. O cão se assusta. Ela está arfando, exausta, joga-se numa cadeira.)
“Ele me chamava de mãezinha, ele sempre me chamava assim, era tão carinhoso, diferente do pai. Olhe, Dunga, eu acho que sei o que foi aquilo. O rapaz não era mulherengo, era caseiro e eu tenho uma desconfiança que não disse a ninguém, vou dizer a você, agora guarde segredo: eu acho que o meu querido nunca conheceu mulher! Nunca! Ele era muito tímido, acanhado, você sabe, não teve namoradas, só um flerte com a Mariazinha, coisa de crianças, e eu digo que ele nunca conheceu mulher pelo seguinte: ele tinha o membro, sabe, o pênis, assim…pontudo, quero dizer, bicudinho feito de menino pequeno. Ele ainda tinha assim. Quando homem conhece mulher, aquela pele se retrai e deixa a cabeça do membro do lado de fora. Não sei se você me entendeu, mas é mais ou menos assim. Os judeus quando se batizam cortam aquilo. Também não sei, pode acontecer que ele tivesse fimose, que é uma coisa muito comum, mas eu acho que não, que ele não conhecia mulher mesmo. Foi por isso: ele nunca teve esses contactos, então apareceu a menina provocando, e aí… Só pode ter sido.”
“Você veja, Dunga, o jornal. Mentiu, difamou o menino, tudo contra ele, sem nem respeitar a memória do defuntinho. Veja o que aqueles demônios ainda hoje escrevem: ‘O Monstro do Motocolombó’. Primeiro que este bairro aqui ainda não é Motocolombó, e chamar o menino de monstro e contar a história errada, mentindo, só para fazer sensação… Eles são uns hipócritas, uns comunistas, gostam de fazer os outros sofrer, dizendo que quando o meu filho viu o que tinha feito quis matar a menina, que foi detido pelos vizinhos, depois o escuro viu o que tinha acontecido e passou a faca nele, mas foi por trás, na traição… O meu querido não pôde nem se defender.”
(Minha mulher se arrasta até a estante de tijolos e tábuas. Apanha um jornal, revira-o, aperta os lábios. O cão atento.)
“Veja aqui, Dunga. O advogado do escuro falando: ‘É inequívoca a absolvição de Djalma Emídio de Freitas’, diz o causídico Heraldo Roque. ‘O crime foi cometido em legítima defesa da honra e o meu constituinte encontra-se em estado de elevado moral, haja vista sua reação psicologicamente normal e humanamente justificável.’ Sei, sei. O maldito de consciência limpa, não é? Eles dizem o que querem e bem entendem. E jurei nunca mais comprar os jornais que chamam o meu querido de monstro, tarado e outras barbaridades, que a cidade toda se revoltou com o crime dele, estupro; mas quem se revoltou com o crime do mulato, crime de morte?”
(Enquanto o cachorro se espreguiça, ela amassa o jornal contra a mesa. Puxa o trapo do bolso, vai chorar novamente, a minha mulher.)
“Pronto: duas xícaras, dois talheres. É como se o meu querido viesse jantar hoje comigo. Quando ele chegava em casa você ficava tão contente, não era, Dunga? Mas eu guardei a boa pra lhe dizer agora, cachorrinho…”
(Ela curva-se com muito esforço, abraça o animal que tenta levantar-se, desconfiado.)
“Passei pela cadeia hoje, cachorrinho! Estão construindo um edifício atrás e um barulho infernal de uma máquina vai ajudar meu plano. E você acha que eles vão revistar uma velha como eu? Já está tudo pronto, já pensei em tudo. Ah, eu vivo nesta miséria, mas se enganam comigo. Não sou burra não, tenho curso.”
(Minha mulher volta ao quarto para trocar de roupa.)
“Eles estão certos, estão certos! Legítima defesa da honra, é, ele está certo, o tal de Heraldo Roque. Todos estão certos, Dunga, até o padre Moreira está certo. Você viu como ele fez cara feia para celebrar a missa de sétimo dia do meu querido? Eles pensam que eu não sei, mas eu leio os pensamentos deles todos. Na certa pensou: ‘como é que eu posso celebrar missa para um monstro, o monstro do Motocolombó?’ Não, ele não está errado. O meu querido é monstro, não é, padre vigarista? Se eles soubessem a verdade, se soubessem…”
(Ela vai apressada para a rua, seguida lentamente pelo cão.)
“Está tudo pronto, cachorrinho. A mesa posta, tudo pronto. Daqui a pouco eu chego e faço café. Só tem café e umas bananas. Você precisa compreender, Dunga, que aquela miséria do Instituto não dá pra nada. Eu só estou pensando em você, velho desse jeito, ter de passar fome. Em mim não, o que eu já passei… Bem, Dunga, eu volto. Cuide da casa. Mas, meu Deus, não é que eu ia esquecendo? Estou com uma cabeça…”
(Volta, pega o revólver em cima da cristaleira para colocá-lo, com muito cuidado, na bolsa. O cão uiva, baixinho.)
“Não se incomode, Dunga, eu volto. Mas é claro que eu volto. Ninguém vai descobrir, planejei tudo, ninguém vai saber. Que horas são? Puxa, já quase cinco…”
…
“Gostaria de falar com Djalma Emídio.”
“Como?”
“Djalma Emídio. O rapaz que…”
“Sei, sim, sei quem é. É coisa urgente?”
“Muito urgente. Tenho um recado do advogado dele. Sou madrinha dele.”
“Está bem, pode vir. Só que a senhora, para falar com ele, vai ter de gritar mais do que aqui. Essa máquina faz um barulho desgraçado. Lá onde o rapaz está ainda é pior. É preciso gritar, bem alto. A senhora quer vir?”
“Não tem importância, eu…”
“Oh, desculpe, É negócio particular, não? Sim, a senhora disse, coisa do advogado. A senhora é madrinha dele, não é? Olhe, pode ficar tranquila. Esse rapaz já está solto. Aposto que vai ser por unanimidade. O que ele fez eu faria, qualquer um faria, minha senhora. A senhora não se preocupe com isso. Sou capaz de apostar. Quem mata um tarado daqueles não merece nem ser preso. Faz um bem à sociedade, não seja por isso que a senhora vá se preocupar. Olhe, eu tenho uma menina…”
“Por onde é mesmo que se vai?”
“Ah, sim, é por aqui. Olhe, a senhora dobra à esquerda e vai embora. É a última cela do lado direito. Ali, no lado direito, lá no fim. Pode ir. A senhora entendeu o que eu disse? Eu já estou rouco de gritar por causa dessa máquina.”
(O policial leva-a pelo braço, até a metade do corredor. Ela agradece, segue sozinha.)
“Meu Deus, acho que estou ficando doida. Não me lembro nem do nome do escuro e esse diabo chamando o meu querido de monstro, culpando o menino. Nem ele sabe de nada. Ninguém sabe de coisa nenhuma. Eu achava mesmo que não ia ficar boa do juízo, por causa desse barulho… a cabeça rodando, rodando… Cadê Dunga? Mas Dunga não ficou em casa? Você parece que está doida mesmo, velha! Ah, é aqui.”
“Escuro! Dunga! Ei, Dunga! Dunga!
(O homem levanta-se da pequena cama, vai até as grades, tenta identificá-la. Devagar, ela abre a bolsa, retira o revólver. O homem joga-se no chão.)
“Você sabia demais que ia morrer Dunga! Pensou que ia ficar assim? Toma outra, escuro! E ainda quis escapar, hem? Por baixo da cama… Outra! Eu não sabia que este gatilho estava tão emperrado; também, fora de uso, essa dormência nas mãos… Outra! Escuro! Eu acho que você já se acabou, demônio! Mas talvez eu tenha mais uma para você, cachorrinho…”
(Minha mulher acaba de honrar o nome da minha família. Agora é a minha vez de ajustar as contas com esse filho da puta. Aqui.)
Do livro “Querido Senhor Assassino” – Editora Símbolo, São Paulo, 1979.
Muito bom!
Vindo de você, é uma espécie de maná. Escrevi essa história naquele quarto dos fundos da casa da Madalena, aos 17 anos. De caderno e caneta. Lembro com detalhes: a mesa, uma máquina de costura encalhada, a janela que dava para o oitão e a mangueira, o cheiro bom de comida quase pronta, na cozinha ao lado. Como se fosse hoje. Aliás, é hoje. A memória usa o tempo e faz o diabo com ele.