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Archive for março \27\-03:00 2013

Ela já deveria ter atendido um monte de gente e talvez por isso nem me olhou direito.

“Pois não…”, disse, meio distraída, ajeitando umas fichas na gaveta da mesinha. Eu permaneci calado.

“Pois não”, repetiu, e levantou os olhos, encarando-me. Gosto de ser encarado. Ela sorriu um sorriso débil. Deveria estar mesmo exausta. Esse pessoal caridoso trabalha o dia inteiro e estica a noite atendendo a gentalha. Ela:

“Por que o irmão veio nos procurar? Todos os problemas são resolvidos por Jesus. Todos.”

“O meu, não sei não.”

“O seu, o meu.” Apesar de murcho, o sorriso era bonito. Dentes grandes, gengiva bem vermelha. “Jesus resolve o problema de todo mundo, irmão.”

Suspirei fundo, como quem procura coragem.

“Até o problema de alguém que matou sua própria esposa?”

No começo, silêncio. Mas os olhos dela se abriram mais, encarando-me com aflição. A boca estremeceu, de forma sutil. E aquela expressão de cansaço sumiu de repente. Eu me agitei na cadeira, eu era gozo puro. Ela olhou para os lados, discreta, onde uns outros dez voluntários ouviam misérias.

“E isso…”, ela conseguiu balbuciar, “já faz tempo?”

Olhei o relógio, disse: “Duas horas e meia, mais ou menos. Deixei o cadáver lá e vim.”

“Pra cá, diretamente?”

A voz dela se elevara um pouco.

“Dizem que aqui as pessoas entendem a gente…”

Longa pausa. Agora, os lábios da mulher (uns trinta anos, gostosinha) tremiam como se fizesse muito frio.

“Jesus entende a todos nós”, ela ainda disse, engolindo em seco. Súbito, pôs a mão na boca. “Desculpe, não estou me sentindo bem…” Levantou-se, trôpega. “Desculpe, preciso ir ao toalete…”

Fechei os olhos. Atingira o máximo da excitação. “Grande garoto!”, eu me disse. “Teu desempenho foi perfeito!”

Aí me lembrei de outros momentos, bons e maus, em que exerci minha arte.

No Centro Espírita da Zona Leste, eu:

“O tal do maníaco que já matou dez mulheres não é quem a polícia está pensando. Sou eu.”

“Muito prazer. Eu me chamo Nossa Senhora de Achiropita”, disse a quarentona de olhos azuis. Uma mulher sisuda, fechada, sem dor. Admito: eu vacilei.

“A senhora não acredita em mim?”

“Não. Já me apareceram uns três caras dizendo que são o maníaco. Fora os outros que passaram pelos meus colegas. Mas, se quiser conversar sério, estou às ordens. O senhor, pelo jeito, precisa mesmo de ajuda.”

Aquilo foi uma lição. Aí eu decidi aprimorar a técnica, ser perfeito na minha arte.

Na Igreja do Cristo Redivivo, eu:

“Desculpe se estou chorando (estava). Sabe, sou gay. O meu marido acaba de morrer de um vírus terrível. Não pense que é Aids. É o vírus Ebola. Ele pegou na África. Acho que me contaminou. Vai contaminar o Brasil. Meu Deus…”

A mocinha, bem nova mesmo, com as últimas espinhas da adolescência no rosto, não entendeu direito. Eu repeti. “Estávamos casados há vinte anos. Nos conhecemos em Paris. Alfredo.”

Ela não conseguiu falar direito. Olhou para mim como se pedisse socorro. Pedia socorro. Levou um tempo assim.

“Sinto muito…”, foi a única coisa que disse a coitadinha.

“Eu também”, respondi. Estava excitadíssimo. É uma sensação de liberdade, de plenitude – só os deuses a conhecem.

Que magia, que delícia! Mas não procuro padres católicos, eles se escondem por trás de telas. Seriam os primeiros a tremer. Eu quero encarar. Quero olho no olho. Ver o outro sem saída, gente se engasgando de medo de mim.

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