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Archive for maio \24\-03:00 2014

O robe

Dorothea, a mãe, não bebia; qualquer um poderia apostar o contrário. Usava um robe puído, manchado (café? manteiga?) e costumava interpelar o filho antes de ele seguir para a escola, onde frequentava o último ano do curso médio. A voz de Dorothea: arrastada, mole, guardando, no entanto, um charme distante.
“Estou feia, Bezinho?”
“Não, mãe. Linda.”
“Não me goze. Já me olhei no espelho. Um trapo.
“A senhora é cruel consigo mesma.”
“Tá vendo? Me chamou de senhora. Só uma mulher feia pode ser chamada de senhora. Sou jovem, ainda. Quer dizer, vivida, sim, mas cheia de recursos…”
“Recursos?”
“Técnicas. Sou capaz de enlouquecer qualquer homem. Até um da sua idade.”
“Na minha idade é fácil, mãe. Os caras não se aguentam com os hormônios.”
“E você, se aguenta?”
“Isso não se comenta com mãe.”
“Tem razão, Bezinho. Eu me esqueço de que você é a pessoa mais séria da família, e a mais equilibrada.”
“A senhora também é, mãe. Só tem umas recaídas.”
“Sempre irônico, também. Mas ironia classuda… Não sou equilibrada coisa nenhuma, meu filho! Esse amor que perdi ontem… hoje pensei em todos os outros e sabe do que descobri? Perdi a conta. Só sei que neste ano foi o quinto.”
“Normal.”
“Como, normal? Se seu avô estivesse vivo me chamaria de spudorata… Uma vez me chamou de puttana. Mas se arrependeu.”
“Assim mesmo, em italiano?”
“Ele era italiano. Nunca disse um palavrão em português. Muito respeitoso, meu pai.”
“Incrível sua ideia de respeito, mãe. Mas eu acho normal a senhora ter tantos namorados. O pai morreu cedo. Claro, seus romances não ajudaram muito a minha formação psicológica, mas ninguém tem culpa disso.”
“Você também tem muitos namorados, bobinho. Não contei, mas acho que, pelo menos este ano, você teve mais do que eu.”
“Uns são só amigos.”
“Que nada, Bezinho. Homossexuais são vorazes. Como eu sou, também. Será que se eu virasse a mão, seria mais gulosa ainda?” – A voz dela, agora, parecia apenas charmosa.
“Mais ainda? A senhora? Acho difícil.” O rapaz sorriu.
“Sabe, Bezinho? Nas minhas orações, só peço que nós dois sejamos felizes. Você talvez já seja. Mas eu estou longe.”
“Ah, não se preocupe comigo. Tenho tempo. Você também: sua vida tem tudo para dar certo. Um príncipe vai surgir, o melhor de todos.”
“Você é um filho maravilhoso. Sempre pra cima.”
“Mãe, só vou lhe pedir uma coisa: lave esse robe; se você aparecer assim, talvez o escolhido não goste…”
“Ah, foi uma mancha de café, hoje de manhã. Vou passar um pano com sabão.”
“Agora, posso ir ao colégio?”
“Vá, vá. Eu fico aqui lhe esperando. Sou muito agradecida a Deus por ter um filho responsável.”
Ela escondia um espelhinho dentro do bolso do robe. Tirou, olhou o rosto. Os olhos ainda estavam manchados: rímel com lágrima.

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Bestunto tomaria conta da porta. Ele era mesmo o mais inteligente do grupo, e sabia conversar com as pessoas. Por exemplo: se, na hora do assalto, alguém quisesse entrar no restaurante, Bestunto daria um jeito de afastar esses clientes. E tudo na conversa, com calma.
Eu (meu nome é Debandinha, porque ando meio torto, pendendo para um lado por causa de uma bala que se alojou pra sempre no meu quadril esquerdo) e o Acuado renderíamos primeiro os manobristas, depois o caixa e os garçons. Eu me concentraria no caixa, apontando o revólver pra cabeça dele. Minha especialidade é a concentração. O assaltado sente quem é frio e quem não é. Sou frio: jamais tremi com um revólver apontado para o outro. No caso, o caixa deveria ser o próprio dono do restaurante, e os donos sabem mais do que ninguém que é melhor não reagir. Eu estava muito seguro, como sempre. Acuado seria o encarregado de pôr todos os empregados e alguns clientes (claro que haveria alguns clientes) na cozinha. Ele não é tão inteligente como Bestunto, mas é jeitoso, pede “por favor”, sem deixar de mostrar a pistola.
Praga de Mãe seguraria o pessoal na cozinha. Praga sabe fazer bem isso, segurar, até porque a cara dele assusta até bicho.
A gente imaginava chegar por volta das duas da manhã, talvez um pouco antes, quando só estivessem por ali alguns clientes meio bêbados e os garçons.
Mas ninguém estava feliz. Antigamente, um pequeno grupo, como o nosso, reunia-se, conversava, escolhia a estratégia, e assaltava. Tudo na hora. No impulso, está certo, sem grande planejamento, mas com aquela vontade de acertar, de enfiar um monte de dinheiro no bolso. Minha porcentagem pessoal no ano passado foi muito boa: quarenta e cinco assaltos, sessenta por cento dos quais limpos, sem mortos ou feridos. Meu faturamento, no entanto, não chegou a ser alto: cento e sessenta mil dólares. Mas, comparado a este período de agora, o ano passado foi uma glória. Já estamos em outubro e eu realizei apenas vinte e uma operações, com faturamento de oitenta mil dólares brutos (estou levando em conta o rateio, em partes iguais, menos para o coordenador, que leva quinze por cento), sem contar as taxas de vinte por cento, que antigamente não havia, é claro, quando a gente ainda era iniciativa individual.
A diferença é que, a partir deste ano, passamos a trabalhar sob comando do Partido. Não planejamos mais nossos próprios assaltos: vem tudo preparado da Comitê Central, e temos apenas de cumprir as ordens. Por exemplo: o assalto a este restaurante foi um trabalho da Diretoria de Planejamento. Escolheu o objetivo, estudou a melhor estratégia e apresentou o projeto ao Comitê Central, que, por sua vez, nos escalou para a execução.
Este é um outro problema: gosto muito dos meus companheiros, são meus irmãos, mas não escolheria, se fosse o responsável pela ação, um quadro como Praga de Mãe. Ele é muito burro e, fisicamente, repulsivo. Estava em outra equipe, que assaltava lojas de departamento, e era só ele pôr o pé num shopping que os clientes chamavam a segurança. Um sujeito com aquela cara só poderia ser tarado ou assaltante. Aí foi afastado. Passaram-no para nosso grupo, que se dedica a assaltos menos sociais. A gente não reclamou de pena dele. Mas o Praga atrapalha. As pessoas podem entrar em pânico só de olhar pra ele. Hoje em dia, assaltos são operações delicadas, não devem fazer vítimas, isso joga a opinião pública contra nós. Não somos bárbaros, somos expropriadores.
Mas, pelo Partido, tudo. Admito que alguma coisa melhorou. Agora, temos os melhores advogados do País. Poucos de nós ficam presos por muito tempo. E há, ainda, o Comando Cássio Pilar, que resgata os que não conseguiram se beneficiar da Justiça. Cássio Pilar foi um dos nossos que tombou, heroicamente, numa operação de resgate, logo no início da atuação do Partido.
Bem, voltando ao trabalho aqui. Recebemos um relatório completo das atividades deste restaurante: número presumido de clientes em todas as horas; número de garçons; posição do caixa; manobristas e seguranças, e seus respectivos lugares no palco das operações. Tudo furado. Os manobristas eram, na verdade, os próprios seguranças, obedecendo aos novos tempos, que obrigam o profissional a desempenhar várias funções ao mesmo tempo. Um dos seguranças eu até conhecia, havia cumprido uns três anos comigo, na Casa de Detenção. Outro furo foi o cálculo dos clientes. Os planejadores não perceberam que havia uma igreja evangélica próxima, e que nela aconteciam reuniões às terças e quintas, no começo da noite, e que, nesses dias, um bom número de participantes acabava jantando no restaurante, ou seja, terça e quinta seriam dias inviáveis para o nosso objetivo. Foi o Bestunto, muito esperto, que acabou descobrindo isso, simplesmente porque, superprofissional, decidiu dar uma olhada no local da operação, dias antes, o que é terminantemente proibido pelo Partido. (Bestunto, na verdade, veio com uma história de que descobrira esses detalhes porque já conhecia a região, mas ninguém nasceu ontem).
Então, tudo pronto, vamos lá. Chegamos, dois pela esquerda, dois pela direita, e pegamos fácil o único manobrista/segurança, porque o outro, justamente o meu colega, já havia saído. “Quieto, viado, passa pra cá o revólver.” “Não uso.” “Não usa uma porra!” E tome uma coronhada na cabeça. Discreta. Foi Bestunto que deu. “Passa logo, ou te mato aqui mesmo”, disse ele. O pobre diabo olhou pro Praga e resolveu pegar a arma, presa na botina. “Agora vá na frente, rapaz, que vou te trancar na cozinha”, disse Acuado, empurrando o cara com delicadeza.
Entramos eu, Acuado com o manobrista e Praga de Mãe. Na hora em que o caixa, que era o dono, nos viu, adivinhou tudo. Ficou branco. Nem se mexeu de onde estava. “Eu gosto assim”, eu disse a ele, “os bons meninos ficam quietinhos.” Mas o sujeito começou a tremer. Esperamos que dois dos três garçons chegassem do salão, onde serviam a apenas um casal. Praga de Mãe já tomava conta, dentro da cozinha, do manobrista, do cozinheiro e de um auxiliar. Praga de Mãe não ameaçava ninguém, assim, de mostrar revólver. Só apontava o volume debaixo da camisa. Não precisava de mais nada.
“Eu tenho de falar uma coisa com o senhor”, disse-me o caixa.
“Depois, moleque (ele era muito novinho). Vamos primeiro limpar o salão.”
“Limpar, como? Vai atirar nas pessoas?”
“Claro que não, babaca. Vou esperar que os garçons voltem do salão.”
E eles logo voltaram, eram dois, um deles trazendo uma bandeja pesadíssima. Ao nos ver, perdeu o equilíbrio e caiu tudo no chão. Restos de sobremesa, molho de tomate, uns nacos de carne, sujeira grossa. E o barulho? Mas um casal, em confabulações amorosas, deu somente uma olhada, rápida. Acuado não deixou que aquele garçom juntasse as coisas, já mandou os dois pra cozinha. Depois, foi até o salão e convidou o casal a se juntar ao pessoal. A moça ensaiou gritar. Acuado mostrou a arma, ela se conteve.
Aí eu me virei para o caixa. “Que é que você queria falar comigo?”
“Senhor, quero pedir desculpas, mas eu só tenho aqui dinheiro meu. No restaurante, só aceitamos cartão de crédito e cheque.”
“Caralho. Não diga!”
“Infelizmente, senhor. Mas eu tenho alguma coisa. Talvez o cliente tenha, também.”
“Não, cara, eu vim aqui pegar a féria.”
“Não tem.”
‘Partido de merda!’, eu tive vontade de comentar, mas me calei. Mandei o caixa se levantar.
“Vai me matar?”, ele perguntou, lívido.
“Não, porra. Só pensa nisso?”
Levei-o até a cozinha. Tinha um cheiro horrível, de bosta, lá dentro.
“Que cheiro é esse, Praga?”
“O cozinheiro se cagou todo.”
“Que foi que você fez, idiota? Assustou o cara?”
“Só perguntei se ele tinha lasanha. Deu fome, meu. Aí ele disse que o restaurante não serve lasanha e começou a chorar…”
Fiquei deprimido. Pegamos o dinheiro de todo mundo, não chegou a dois mil dólares. A equipe de planejamento se esqueceu de examinar o cardápio. Estava lá escrito: “Só aceitamos cartões de crédito ou cheques especiais, para evitar assaltos.” Se eu tivesse, sozinho, pesquisado o ponto, planejado e operado, nada disso teria acontecido. O Partido é muito burocrático. É uma espécie de repartição pública. Confio em Bestunto: vou comentar com ele que não estou feliz com esse jeito de trabalhar. Eu sei que ele também é contra. Mas, o que a gente pode fazer? Se cairmos fora, poderemos acabar assassinados pelos nossos próprios amigos, que se sentem mais seguros pertencendo a uma organização com muito dinheiro para contratar advogados, comprar policiais e juízes. Nossa situação é a mesma dos funcionários do governo: ganhamos uma merda mas estamos protegidos. Não, não quero ser acusado de individualista. Mas essa não é a vida que pedi a Deus.
Do livro “O Homem dentro de um Cão”, Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2007

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