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Archive for outubro \08\-03:00 2013

A notícia nos paralisou a todas. Janaína, Maria Nery, Cássia e Valdeci: mortas. Estavam muito feridas, mas deveriam escapar: Jônia e Helena. O restante, trinta e duas moças e o motorista do ônibus, com ferimentos leves. A única pergunta que todas nós fizemos às superioras: não seria algum engano? Os mortos são sempre os outros.

A verdade é que jamais estamos preparados para uma notícia dessas. Não acreditamos nela. Um rodamoinho se instalou na minha mente. Emudeci e me escondi na capela. Olhei de lado: as outras tiveram uma reação parecida. Pensei: noviças são quase iguais. Têm mais ou menos a mesma idade. Imaginam que possuem vocação idêntica. Sofrem os mesmos condicionamentos na sua educação. É lógico que reajam tão… coletivamente.

Não, nada é lógico. Quatro meninas, quase meninas, mortas. A dor seria diferente, mais intensa, talvez, se elas fossem meninas do mundo, com amores oficializados, casamentos marcados e sonhos de organizar famílias no futuro? A nossa dor é, quem sabe, mais modesta, e previamente consolada, pois as nossas meninas mortas são (seriam) meninas de Deus. Pobrezinhas, sem amores e (podemos dizer ou é crueldade?) sem futuro.

Que horror! É claro que possuíam um futuro, coitadas, eventualmente brilhante, porque se preparavam para servir à humanidade, de várias formas, dentro de hospitais de periferia, ou até nos confins do mundo (Maria Nery falava, o tempo todo, em trabalhar na África), ou, ainda, administrando o gigantesco patrimônio da nossa organização, que não deixa de ser uma multinacional de gerenciamento complexo.

Não teriam filhos, não trocariam beijos com os homens… ou, melhor, nem isso importava, já que poderiam até trocá-los se abandonassem o claustro e mergulhassem nas ilusões que o mundo oferece além desses muros altos.

Cássia, com quem tanto conversei sobre emoções e desejos, tinha muitas dúvidas da sua função no mundo. Os confrontos políticos a atraíam. Torcia quando surgiam, na tevê, reportagens sobre movimentos populares. Ela acreditava na inevitável igualdade das classes, e até das religiões, quando todos os terráqueos se sentissem exaustos da autodestruição, por meio de bombas ou de armas mais sutis da economia. Costumava dizer, a minha colega morta, que o potencial de destruição de um banqueiro era infinitamente maior do que o de um general enlouquecido. As pessoas falam isso como uma piada, mas não é, ela explicava, com sua rara inteligência, o quanto o dinheiro do povo se presta a lucros e jogadas financeiras. Seria um gênio da oposição, essa menina morta. Talvez não convivesse conosco durante muito mais tempo. O mundo lá fora a exigia.

É engraçado como, nessas horas, a minha mente, e eu desconfio que a mente de todas nós, se afasta da imensa consolação, tão grande como teórica, de uma vida no além. Em nenhum momento imaginei as quatro meninas a vivenciar uma realidade transcendente, como a chegada ao seio da Divindade. Talvez eu não tenha mesmo fé. Mas não sei se isso é grave. Depois de quatro mortes tão próximas, os conceitos se esgarçam e alguns podem sucumbir para sempre. A partir de hoje, eu sou outra pessoa.

Janaína é a minha dor maior. Na verdade, a minha única amiga, amiga pra valer. Talvez só eu e o confessor soubéssemos que ela estava apaixonada. Contou-me a mim, a mais amiga e confiável, os detalhes do seu sentimento, sem tocar no nome do ser amado. E eu a respeitei, não lhe fiz perguntas. Apenas indaguei a mim mesma: um dos técnicos em computação, que nos visitam freqüentemente? O coordenador do curso de Letras? O leiteiro? Ou alguém que ela conheceu numa visita à cidade, dentro de uma livraria, talvez?

Não me interessa, sobretudo agora. “Eu não entendo como um pecado”, ela me dizia, de olhos brilhando, “mas como um milagre que tomou conta de mim e me faz sentir viva, parte do mundo, porque essa é, também, uma linguagem carnal.”

Seria mais fácil afastar-se do desejo, pensei, mas Janaína valorizava mais o lado espiritualizado da sua paixão. Seria melhor que ela sentisse o apelo da carne, como se dizia antigamente, o impulso de entregar-se, como uma fêmea em ânsias, ao desejo do macho exasperado, repetindo a Natureza.

Por que ela jamais me contou quem lhe falava a linguagem do corpo?

Quando tento responder a essa pergunta, a minha dor progride e me toma por inteiro, projetando-se no meu próprio futuro. Ao me eleger confidente, até com certa insistência, Janaína poderia estar-me dizendo que não havia propriamente alguém amorável fora da nossa comunidade; que o Amor estava à sua frente: eu.

A mim, então, que jamais tive sensibilidade suficiente para assimilar linguagens sutis ou intensas, que fui privada pela Natureza das armadilhas do irracional, agora só me resta perplexidade, além da dor.

Pior: estou me culpando de ser a perfeita, a verdadeira e incorruptível menina de Deus. O que há de errado em mim que não me permite sequer correr o risco de cair nos regalos da carne, e, talvez daí, nas trevas exteriores, como os outros?

Do livro “Allegro” – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003.

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