Feeds:
Posts
Comentários

Archive for abril \30\-03:00 2013

Chocalho de cascavel no shopping

A Cobra Corpórea era um ser encantado. Nada mais nada menos. Assim como uma fada européia. Não, não. Era brasileira, mesmo, como o Boto Cor-de-Rosa ou o Saci-Pererê, os mais universais dos encantamentos nacionais, na minha opinião.

Só a viam os paranormais e as crianças de Recanto das Antas, um lugarejo perdido no sertão; eles se mostravam fascinados com o pequeno ser, de corpo de serpente e cabeça humana, aparentemente feminina, por causa dos longos cabelos, mas eventualmente andrógino. A voz, segundo os videntes, era de mulher, ou melhor, de pré-adolescente, de quase menina. De qualquer forma, esse talvez fosse o detalhe menos polêmico da descrição do ser. Meu trabalho é estranho: sou jornalista ateu, racional, não acredito em nada dessas coisas, mas trabalho para quem acredita e assim, como profissional sério, devo ser o mais preciso possível nas descrições.

Aceitei o emprego do portal “Encantamentos” pelo simplório motivo de que estava difícil arrumar trabalho naquela época e eu precisava pagar, além do aluguel, o complicado tratamento da minha filha Giselle, de dez anos, aidética. A mãe dela, namorada minha que engravidou, morrera no ano anterior e eu era considerado uma espécie de fenômeno, por não ter sido contaminado. Já fizera inúmeros testes, que davam negativo. O custo maior do tratamento de Giselle era coberto pelo governo, mas sempre havia os remédios por fora, as visitas a especialistas, etc. E eu ainda sonhava em levar a menina aos Estados Unidos, apenas para ouvir opiniões sobre algumas abordagens alternativas. Trabalhar num portal especializado em misticismo não é o objetivo da maioria dos jornalistas, mas, diante das circunstâncias, era pegar ou largar. Peguei.

Quando apareci na empresa, alertado por um amigo sobre a vaga, fui recebido por uma figura inesquecível, conhecido como João Abjeto, um apelido que nada tinha a ver com a etimologia do adjetivo, pois o João, apesar de franco, direto, era uma pessoa delicada e mesmo doce. Ele chefiava a Redação e fazia questão de entrevistar todos os possíveis colaboradores.

“Você é espiritualista?”, foi sua primeira pergunta.

“Não”, respondi prontamente, de reflexo. Eu costumava ser assim mesmo, sincero, mas no reflexo.

“Maravilha”, exultou o editor-chefe. “Está empregado.”

Se tivesse demorado frações de segundo para responder, como acontecera com os candidatos anteriores, ficaria fora do páreo. “Você provou que é honesto”, alegrou-se o Abjeto.

“Obrigado pela confiança”, respondi. “E gostaria de ser mais honesto ainda.”

“Assim tá bom”, João encerrou a conversa. “Honestidade em excesso vira babaquice.”

Comecei imediatamente a trabalhar. Quando ele soube que eu tinha uma filha sem mãe, e ainda por cima aidética, passou a me proteger acintosamente, o que me criava um certo mal-estar diante dos outros colegas, apesar da solidariedade geral.

Abjeto, um espiritualista sólido, chegando à erudição na matéria, apreciava a busca da objetividade no jornalismo, mesmo que se escrevesse sobre os sonhos (ou visões, sensações, estados d’alma) das pessoas envolvidas em todo aquele universo que, no íntimo, me parecia apenas delirante.

Não acreditar no que me diziam, em princípio, acabava funcionando como um atestado de credibilidade para os meus entrevistados: afinal, quem não acredita, não escreve a respeito; mas eu era obrigado. Isso premiava o texto com uma seriedade que nem eu percebia bem. E era justamente isso o que o Abjeto gostaria de passar para o leitor: uma visão formalmente realista e correta daquilo que, por definição, era irreal.

E assim eu ia aparecendo nos lugares, perguntando onde estavam os fantasmas, que jeito tinham, de que forma falavam, com ou sem sotaque, etc., etc. Ficava fácil, às vezes, desmascarar os loucos que inventavam histórias. Eles se contradiziam na primeira entrevista, ou fugiam de mim como se eu fosse um juiz.

Foi assim também que eu destruí a reputação do Coronel Epifânio, um picareta que se dizia tomado pelo espírito de um médico do século dezoito, e cujo principal delírio era o de encher um estádio de futebol de doentes e curá-los a todos, ao mesmo tempo, apenas com uma distante e simbólica aposição de mãos.

“Posso fazer uma grande entrevista com o senhor”, disse ao coronel, “mas gostaria que, antes, o senhor curasse um paciente meu.”

“Traga quem você quiser. Um parente. Um amigo. Ou até sua mãezinha, se ela estiver doente.” Além de bandido, era cínico.

“Esta, infelizmente, já se foi, coronel, mas eu tenho o meu doentinho.”

“Então traga já.” O homem era de uma autoconfiança suicida.

Levei seu Jeremias, um cego do meu bairro, que conhecia desde criança, para fazer o papel do “meu” doente. Ele sofrera um acidente aos quatro anos de idade, um certo ácido lhe caíra nos olhos, e então perdera a visão. Sua única memória visual era a de uma imensa árvore, de tronco e galhos quase negros. Mais nada. Tive o cuidado de conversar antes com ele, dizendo-lhe que não ficasse esperançoso. Que, se ocorresse um milagre, eu seria o primeiro a me ajoelhar e pedir perdão a Deus por décadas de ceticismo. Mas que, sinceramente, eu não acreditava em nada daquilo, apesar de trabalhar em um portal chamado “Encantamentos”.

“É mesmo, menino, tu não acreditas em nada?”

“Nada, seu Jeremias.”

“E se eu te disser que já vi Deus na minha escuridão?”

“Eu vou achar que o senhor ficou meio doido…”

“Pois é. Tu és mais cego do que eu.”

Seu Jeremias era assim mesmo, descontraído. E lá fomos nós. O picareta deve ter imaginado que eu levaria alguém com uma dor nos rins, ou no estômago, ou até algum maluco, sofrendo de doenças imaginárias, que ele curaria com o seu inegável dom de persuasão.

“Porra, um cego! Mas aí já é dose pra leão…”, eu o vi comentar com um dos assessores, sem saber que fiz curso de leitura labial.

“Vou curar o senhor!”, disse o coronel, dirigindo-se à minha cobaia, “mas não sei se a sua visão se recuperará ainda hoje, ou se vai levar um tempinho.” Que sacana! “Mas, pelo menos”, continuou, “uma luz o senhor vai ver agora, neste minuto. Seja honesto comigo, seu Jeremias, o senhor está vendo uma luz, não está?”

Seu Jeremias apertou seus olhos inúteis, fez uma cara de espanto, e eu comecei a me preocupar.

“Estou, estou vendo, sim.”

Os assessores do coronel quase bateram palmas. Outras pessoas por perto, populares ingênuos, entraram numa espécie de transe. Houve quem dissesse, em voz alta, “obrigado, Senhor!”

“Muito bem”, disse o bandido, cada vez mais confiante. “E esta luz irá aumentando, cada vez mais, até o senhor recuperar toda a sua visão.”

“No meio da luz, meu senhor, estou vendo um rosto…”

“Um rosto?”, estranhou o coronel. “E como ele é?”

“É todo feito de madeira, meu senhor. E pelo jeito está rindo da minha cara.”

“É o cara-de-pau!”, eu falei, no ato, e o coronel, fuzilando a mim e ao cego com um olhar de vampiro, virou-se, subitamente, e foi embora, dizendo que não estava ali para brincadeiras.

Bem, agora estou de novo no meio de uma outra ficção, essa conversa da Cobra Corpórea, só que aqui não há picaretas que a vêem, mas crianças de seis a doze anos e adultos de todas as idades, gente muito humilde do sertão. Ou seja, eles não estão mentindo. Alguma coisa vêem. É estranho.

E, por que diabos, chamam a aparição de Cobra Corpórea? De onde tiraram “corpórea”? Entrevistei dezenas deles, e todos me dizem que ouviram isso dos seus pais e tios, que a visão anda pelo lugar há séculos, que é mais antiga, até, que o Padim Cícero Romão, o mito mais próximo deles.

A descrição de todos batia de uma forma inacreditável: eram crianças falando-me de um bicho com escamas no corpo de cobra, com um rosto humano andrógino ostentando cílios negros. E a voz de menininha. A única dúvida, mesmo, era o sexo da aparição, apesar de todos os indícios apontarem para o feminino.

E qual o sentido dessa, digamos, intervenção na realidade? Por que o pequeno deus, ou símbolo, viria à terra, e ainda mais ao sertão, para conversar com os mortais? Por que não na capital? Ou em Paris? Foi um velhinho, seu Asdrúbal, que parecia ter oitenta anos mas não passara dos sessenta, que me elucidou: “Aqui só aparece coisa que a gente entende”.

É fato. Aquela é uma região infestada de cobras. Há muita gente vestindo sapatos do couro dos pobres ofídeos, mortos a porradas. No arremedo de hospital, lá perto, havia todos os tipos de antídotos. Nada mais lógico, então, do que o elemental de plantão vestir-se de cobra.

E por que andrógino, ou indefinido? Lá veio seu Asdrúbal de novo: “Ué, pra se dar o respeito para homem, menino e mulher.” É… faz sentido. Sem comentários.

“Mas o que diabo, gente, essa cobra fala? Que é que ela diz?” A resposta era mais ou menos a mesma: “Tudo o que a gente precisa saber. Se é preciso tratar de alguma peste, a Cobra Corpórea diz como. Se o mal é a cabeça doida, ela explica o que se pode fazer. Se é falta de dinheiro, ela dá palpite sobre trabalho mais rendoso. Êta cobra esperta!”. Para as crianças, a mesma coisa: aconselhamento, carinho, boas influências.

“Pois bem”, eu disse a um grupo reunido diante de um casebre, “eu quero conversar com a cobra. E se ela permitir, até a filmo com minha máquina.”

“Não sei se ela vai lhe aparecer, não”, disse uma mulher escura, cabelo escorrido e traços de índio no rosto. “Primeiro porque o senhor não acredita. Já perguntou tanto… Depois porque não sei se o senhor tem precisão.”

“Tenho uma filha que sofre de uma doença sem cura.”

Eles ficaram constrangidos, coçaram a cabeça, mas me deram uma dica. Lugar de encantamento é perto de água. E água, por ali, só num açude quase seco, onde algumas vacas magérrimas passavam o dia fuçando a lama. Eu tinha de ir pra lá, de preferência à noite, hora propícia para as aparições.

Era demais para mim. Mas lá fui eu, idiota, até a beira do açude, dois quilômetros adiante, cercado de crianças sorridentes que, logo, logo, foram recolhidas pelos pais. Escolhi um ponto que me pareceu mais simpático, próximo a uma das poças de lama, e sentei-me em uma pedra grande. Fazia frio no sertão, como acontece nos desertos. Esperei uns quarenta e cinco minutos, olhando o breu e imaginando a tragédia da cegueira, pensando no delírio que seu Jeremias experimentou, imaginando que vira Deus por dentro da escuridão.

“Cobra Corpórea, apareça!” , eu gritei em voz alta, e somente os sapos e uns pássaros de piar lúgubre me responderam. “Preciso de ajuda para a Giselle. Não tem sido fácil pra mim, sabe, ó Cobra? Não sei mais o que fazer com a menina, daqui a pouco vou ter de lhe explicar o que é menstruação, sou obrigado a viajar e fico longe dela, também não sei por quanto tempo ela vai viver. Me ajuda, Cobra Corpórea!”

Mais um pouco e estava chorando. Jamais havia rezado na minha vida, que me lembrasse, meus pais eram agnósticos, nem deixaram que eu fizesse a primeira comunhão, junto com os primos da minha idade. A menção à Giselle havia me esmagado emocionalmente. Mas logo me refiz e, no fim da crise, senti que chorava de vergonha de mim mesmo, por me prestar àquele papel ridículo, clamando por uma alucinação coletiva, à beira de um açude seco, num fim de mundo brasileiro.

Na volta, ouvi o som de um chocalho e cheguei a imaginar, no primeiro momento, que fosse um sinal da aparição. Depois, silêncio profundo, e eu me dei conta de que poderia ser cobra de verdade, no meu encalço. Cheguei ao lugarejo correndo e somente seu Zinho, o homem que me hospedara na sua ampla maloca de três cômodos, estava acordado me esperando. Antes que ele me perguntasse qualquer coisa, eu já fui dizendo “não vi nada, não vi nada.”

“Mas ouviu um chocalho?”

“Como o senhor sabe?”

“Cobra Corpórea sempre dá esse sinal quando ouve os reclamos.”

“E se o chocalho foi de cobra mesmo?”

“Aí lhe teria picado. Não avisa.”

Achei melhor esquecer. De qualquer maneira, voltei com uma excelente reportagem. Iria escrever simplesmente o que tinha visto, sem entrar nos detalhes do meu vexame. Contaria o que o povo me dizia, faria umas pesquisas sobre elementais brasileiros e outros tipos de aparições, não deixaria de especular um pouco sobre a tradição européia dos seres encantados. Um bom trabalho.

Escrever era uma bênção para mim, porque ficava, o tempo todo, perto de Giselle. Assintomática, a pobrezinha até que levaria uma vida normal, não fossem uns problemas de preconceito no colégio. Mas eu nem me importava muito com isso. Enquanto mantivesse a saúde, minha filha enfrentaria o mundo. Que é sempre perverso com os diferentes.

Um dia ela me chegou meio misteriosa, perguntando se eu lhe atenderia a um pedido. “Claro.” Aí ela me deu um papel dobrado onde escrevera os nomes de três ervas medicinais.

“Compra pra mim?”

“Já disse, compro. Quem lhe deu isso, Giselle?”

Não respondeu. Foi certamente a professora de Ciências, que ela amava, pensei. Liguei depois para a professora, sondei, perguntei diretamente, nada. Não lhe havia dito coisa alguma.

Chamei Giselle para uma conversa séria.

“Querida”, disse-lhe, “vou lhe falar uma coisa e você vai me dizer sim ou não. Entre nós, a gente combinou, não vale mentir. Está certo?”

Giselle fez sim com a cabeça, apertando os lábios, preocupada.

“Quem lhe passou tudo isso foi uma cobra? Quer dizer, uma cobra com cara de menino esquisito?”

Giselle olhou para mim, mais assustada ainda, encarou-me um tempo e explodiu numa grande risada. Há muito eu não ouvia uma gargalhada tão gostosa, regalada, saudável.

“Tá doido, pai? E eu lá converso com cobras?”

Fez uma pausa para continuar rindo, e acabou confessando:

“Eu sonhei, pai, com os nomes dessas ervas e quando me levantei tinha certeza de que o chá delas vai ajudar a cura da minha doença.”

Mais uma vez confuso, fui atrás das ervas e acabei descobrindo que já são usadas, em alguns países, em tratamentos alternativos, para a recuperação de aidéticos. Claro, Giselle ouvira em algum lugar aqueles nomes, guardara no inconsciente e acordara com a informação na mente.

Mas que é desagradável ouvir um chocalho invisível, de vez em quando, em plena cidade, em lugares onde é impossível a presença de uma cobra, ah, isso é. E tem acontecido comigo. Dia desses, no meio do shopping. Cheguei a saltar de lado, como se uma cascavel estivesse prestes a me morder os calcanhares. “Vôtes! T’esconjuro, cão danado!”, diriam as beatas do sertão.

Do livro “O Homem dentro de um Cão”, Editora Terceiro Nome, 2007

Read Full Post »