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Archive for março \07\-03:00 2014

A gênese

Na verdade, estava louco para ver, pessoalmente, o cliente ideal. Desde que comecei a pesquisar árvores genealógicas, ninguém me havia pago adiantado. Mas o Sr. Hermann pagou e nem me pediu desconto. Imaginava um sujeito meio baixo, magro, cabelo escovinha, de roupa escura e gravata burocrática. Jeito dissimulado, como convém a certos milionários. Ele era o meu primeiro cliente milionário. Meus clientes, na maioria, não passavam de intelectuais remediados, metidos a besta. Mas eu sempre errava quando julgava pela voz. A do Sr. Hermann era a de um mau-caráter. Chegava a ser sórdida na pontuação, nas pausas.

Ele chegou e me desmentiu. Alto, forte, bonito. A roupa elegantérrima; a gravata, certamente comprada em Milão. Era simpático, também. A voz, unida à imagem, dava-me a ideia oposta à que havia formado dele. Sentou-se, observando com discrição meu modesto escritório. Estava tenso.

“Eu prefiro”, ele disse, “que você me fale do trabalho antes de entregá-lo. Outra coisa: quero recebê-lo pessoalmente, não mande para a empresa”.

“Como o senhor quiser.”

“E aí? Conseguiu descobrir tudo? Nosso passado nos condena?” Essa última frase foi dita com falso humor.

“Depende do que o senhor entenda por condenação. Está se referindo ao Quilombo?”

Jamais, na minha vida, vi alguém empalidecer tão rápido. “Puxa”, pensei comigo, “fiz merda. Não sei mesmo lidar com humanos. Prefiro os cachorros”.

“O Quilombo… Bem, eu tinha uma ideia… É a nossa origem mesmo?”

“Sem dúvida nenhuma. Estou chegando a 250, 300 anos pra trás. Hoje, com as pesquisas de europeus e americanos, podemos chegar a muitas tribos no continente africano. Quando mergulhar mais fundo, talvez chegue além de Angola, eh.”

“Somos de Angola?”

A cor voltava muito devagar ao seu rosto.

“Na origem familiar consolidada, sem dúvida. Seguinte, seu Hermann: o sangue da sua família começou puro, sangue de negro real, sangue nobre, sangue que, com certeza, deve lhe trazer muito orgulho; depois virou mulato ou cafuzo, e, por causa disso, seus antepassados mais próximos devem ter comido o pão que o diabo amassou, já que os negros puros da época odiavam essas… miscigenações, digamos. Mas o Brasil é isso. Sua gênese é bem interessante, do meu ponto de vista. Até por que o senhor se chama Hermann…”

Aí ele me interrompeu. A voz se alterou um pouco:

“Eu soube que o sobrenome Hermann vem de um padrinho suíço, mas acho que na verdade esse personagem era amante da minha tetravó.”

“Pode até ser, seu Hermann, mas nem todo padrinho daquela época dormia com as comadres. Pelo jeito da documentação acho que era padrinho mesmo. Esse Hermann, pra mim, é um mistério. Ou não. Até bem pouco tempo, as pessoas da sua família eram descritas como ‘pardas’ nos documentos. O senhor foge desse padrão, é óbvio; o senhor não é um suíço, mas passa por italiano, espanhol, português. Acidente genético, pode ser.”

O homem não conseguiu segurar:

“Que absurdo!”, quase gritou. “Ora, pardo! Pardo é cor de quê? De rato? Que preconceito das pessoas! A gente é o que é!”

Minha cara deve ter traído a alegria zombeteira que me tomava, porque já não suporto gente, quanto mais renegado. O homem tornou-se formal. Empertigou-se na cadeira. Até procurei ser um pouco mais simpático:

“Bem, seu Hermann, o mapa, o documento final, como lhe disse, só fica pronto semana que vem… Isso foi só aperitivo.”

Ele se levantou, contrafeito, e se despediu de mim, rapidamente, como quem se recorda de um compromisso importante. Logo percebi que arqueara demais os ombros. Parecia, agora, feio, fraco e avelhantado. Mas nem tive pena dele. Não consigo sentir pena de gente desaceitada e, ainda por cima, rica. Pra falar a verdade, só tenho pena mesmo de bicho. Sou capaz de chorar quando vejo um vira-latas atropelado na estrada.

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