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Archive for the ‘Histórias já publicadas’ Category

Bestunto tomaria conta da porta. Ele era mesmo o mais inteligente do grupo, e sabia conversar com as pessoas. Por exemplo: se, na hora do assalto, alguém quisesse entrar no restaurante, Bestunto daria um jeito de afastar esses clientes. E tudo na conversa, com calma.
Eu (meu nome é Debandinha, porque ando meio torto, pendendo para um lado por causa de uma bala que se alojou pra sempre no meu quadril esquerdo) e o Acuado renderíamos primeiro os manobristas, depois o caixa e os garçons. Eu me concentraria no caixa, apontando o revólver pra cabeça dele. Minha especialidade é a concentração. O assaltado sente quem é frio e quem não é. Sou frio: jamais tremi com um revólver apontado para o outro. No caso, o caixa deveria ser o próprio dono do restaurante, e os donos sabem mais do que ninguém que é melhor não reagir. Eu estava muito seguro, como sempre. Acuado seria o encarregado de pôr todos os empregados e alguns clientes (claro que haveria alguns clientes) na cozinha. Ele não é tão inteligente como Bestunto, mas é jeitoso, pede “por favor”, sem deixar de mostrar a pistola.
Praga de Mãe seguraria o pessoal na cozinha. Praga sabe fazer bem isso, segurar, até porque a cara dele assusta até bicho.
A gente imaginava chegar por volta das duas da manhã, talvez um pouco antes, quando só estivessem por ali alguns clientes meio bêbados e os garçons.
Mas ninguém estava feliz. Antigamente, um pequeno grupo, como o nosso, reunia-se, conversava, escolhia a estratégia, e assaltava. Tudo na hora. No impulso, está certo, sem grande planejamento, mas com aquela vontade de acertar, de enfiar um monte de dinheiro no bolso. Minha porcentagem pessoal no ano passado foi muito boa: quarenta e cinco assaltos, sessenta por cento dos quais limpos, sem mortos ou feridos. Meu faturamento, no entanto, não chegou a ser alto: cento e sessenta mil dólares. Mas, comparado a este período de agora, o ano passado foi uma glória. Já estamos em outubro e eu realizei apenas vinte e uma operações, com faturamento de oitenta mil dólares brutos (estou levando em conta o rateio, em partes iguais, menos para o coordenador, que leva quinze por cento), sem contar as taxas de vinte por cento, que antigamente não havia, é claro, quando a gente ainda era iniciativa individual.
A diferença é que, a partir deste ano, passamos a trabalhar sob comando do Partido. Não planejamos mais nossos próprios assaltos: vem tudo preparado da Comitê Central, e temos apenas de cumprir as ordens. Por exemplo: o assalto a este restaurante foi um trabalho da Diretoria de Planejamento. Escolheu o objetivo, estudou a melhor estratégia e apresentou o projeto ao Comitê Central, que, por sua vez, nos escalou para a execução.
Este é um outro problema: gosto muito dos meus companheiros, são meus irmãos, mas não escolheria, se fosse o responsável pela ação, um quadro como Praga de Mãe. Ele é muito burro e, fisicamente, repulsivo. Estava em outra equipe, que assaltava lojas de departamento, e era só ele pôr o pé num shopping que os clientes chamavam a segurança. Um sujeito com aquela cara só poderia ser tarado ou assaltante. Aí foi afastado. Passaram-no para nosso grupo, que se dedica a assaltos menos sociais. A gente não reclamou de pena dele. Mas o Praga atrapalha. As pessoas podem entrar em pânico só de olhar pra ele. Hoje em dia, assaltos são operações delicadas, não devem fazer vítimas, isso joga a opinião pública contra nós. Não somos bárbaros, somos expropriadores.
Mas, pelo Partido, tudo. Admito que alguma coisa melhorou. Agora, temos os melhores advogados do País. Poucos de nós ficam presos por muito tempo. E há, ainda, o Comando Cássio Pilar, que resgata os que não conseguiram se beneficiar da Justiça. Cássio Pilar foi um dos nossos que tombou, heroicamente, numa operação de resgate, logo no início da atuação do Partido.
Bem, voltando ao trabalho aqui. Recebemos um relatório completo das atividades deste restaurante: número presumido de clientes em todas as horas; número de garçons; posição do caixa; manobristas e seguranças, e seus respectivos lugares no palco das operações. Tudo furado. Os manobristas eram, na verdade, os próprios seguranças, obedecendo aos novos tempos, que obrigam o profissional a desempenhar várias funções ao mesmo tempo. Um dos seguranças eu até conhecia, havia cumprido uns três anos comigo, na Casa de Detenção. Outro furo foi o cálculo dos clientes. Os planejadores não perceberam que havia uma igreja evangélica próxima, e que nela aconteciam reuniões às terças e quintas, no começo da noite, e que, nesses dias, um bom número de participantes acabava jantando no restaurante, ou seja, terça e quinta seriam dias inviáveis para o nosso objetivo. Foi o Bestunto, muito esperto, que acabou descobrindo isso, simplesmente porque, superprofissional, decidiu dar uma olhada no local da operação, dias antes, o que é terminantemente proibido pelo Partido. (Bestunto, na verdade, veio com uma história de que descobrira esses detalhes porque já conhecia a região, mas ninguém nasceu ontem).
Então, tudo pronto, vamos lá. Chegamos, dois pela esquerda, dois pela direita, e pegamos fácil o único manobrista/segurança, porque o outro, justamente o meu colega, já havia saído. “Quieto, viado, passa pra cá o revólver.” “Não uso.” “Não usa uma porra!” E tome uma coronhada na cabeça. Discreta. Foi Bestunto que deu. “Passa logo, ou te mato aqui mesmo”, disse ele. O pobre diabo olhou pro Praga e resolveu pegar a arma, presa na botina. “Agora vá na frente, rapaz, que vou te trancar na cozinha”, disse Acuado, empurrando o cara com delicadeza.
Entramos eu, Acuado com o manobrista e Praga de Mãe. Na hora em que o caixa, que era o dono, nos viu, adivinhou tudo. Ficou branco. Nem se mexeu de onde estava. “Eu gosto assim”, eu disse a ele, “os bons meninos ficam quietinhos.” Mas o sujeito começou a tremer. Esperamos que dois dos três garçons chegassem do salão, onde serviam a apenas um casal. Praga de Mãe já tomava conta, dentro da cozinha, do manobrista, do cozinheiro e de um auxiliar. Praga de Mãe não ameaçava ninguém, assim, de mostrar revólver. Só apontava o volume debaixo da camisa. Não precisava de mais nada.
“Eu tenho de falar uma coisa com o senhor”, disse-me o caixa.
“Depois, moleque (ele era muito novinho). Vamos primeiro limpar o salão.”
“Limpar, como? Vai atirar nas pessoas?”
“Claro que não, babaca. Vou esperar que os garçons voltem do salão.”
E eles logo voltaram, eram dois, um deles trazendo uma bandeja pesadíssima. Ao nos ver, perdeu o equilíbrio e caiu tudo no chão. Restos de sobremesa, molho de tomate, uns nacos de carne, sujeira grossa. E o barulho? Mas um casal, em confabulações amorosas, deu somente uma olhada, rápida. Acuado não deixou que aquele garçom juntasse as coisas, já mandou os dois pra cozinha. Depois, foi até o salão e convidou o casal a se juntar ao pessoal. A moça ensaiou gritar. Acuado mostrou a arma, ela se conteve.
Aí eu me virei para o caixa. “Que é que você queria falar comigo?”
“Senhor, quero pedir desculpas, mas eu só tenho aqui dinheiro meu. No restaurante, só aceitamos cartão de crédito e cheque.”
“Caralho. Não diga!”
“Infelizmente, senhor. Mas eu tenho alguma coisa. Talvez o cliente tenha, também.”
“Não, cara, eu vim aqui pegar a féria.”
“Não tem.”
‘Partido de merda!’, eu tive vontade de comentar, mas me calei. Mandei o caixa se levantar.
“Vai me matar?”, ele perguntou, lívido.
“Não, porra. Só pensa nisso?”
Levei-o até a cozinha. Tinha um cheiro horrível, de bosta, lá dentro.
“Que cheiro é esse, Praga?”
“O cozinheiro se cagou todo.”
“Que foi que você fez, idiota? Assustou o cara?”
“Só perguntei se ele tinha lasanha. Deu fome, meu. Aí ele disse que o restaurante não serve lasanha e começou a chorar…”
Fiquei deprimido. Pegamos o dinheiro de todo mundo, não chegou a dois mil dólares. A equipe de planejamento se esqueceu de examinar o cardápio. Estava lá escrito: “Só aceitamos cartões de crédito ou cheques especiais, para evitar assaltos.” Se eu tivesse, sozinho, pesquisado o ponto, planejado e operado, nada disso teria acontecido. O Partido é muito burocrático. É uma espécie de repartição pública. Confio em Bestunto: vou comentar com ele que não estou feliz com esse jeito de trabalhar. Eu sei que ele também é contra. Mas, o que a gente pode fazer? Se cairmos fora, poderemos acabar assassinados pelos nossos próprios amigos, que se sentem mais seguros pertencendo a uma organização com muito dinheiro para contratar advogados, comprar policiais e juízes. Nossa situação é a mesma dos funcionários do governo: ganhamos uma merda mas estamos protegidos. Não, não quero ser acusado de individualista. Mas essa não é a vida que pedi a Deus.
Do livro “O Homem dentro de um Cão”, Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2007

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Pediram-me para receber Sua Excelência com tapete vermelho e eu o fiz. Do meu jeito, é claro, e dentro das minhas modestas possibilidades. O chefe queria que tivesse gente no cais, na hora do embarque, que eu me virasse e arrebanhasse quem fosse, para dar volume ao evento. Eu só conheço puta, pescador e bêbado. E foram eles que levei.

Fiquei olhando Sua Excelência. Estava vestindo uma calça cáqui bem safada, dessas de lojinha, mas era nova em folha. Deve ter pensado: o povo lá é modesto e eu vou me vestir do jeito dele. Filho da puta. A camisa social parecia elegante, mas já estava meio velhinha. O cara se fantasiara de pobre! Depois da nossa pescaria, ele jogaria fora aquela roupa ou, no máximo, a entregaria ao asilo mais próximo. Cachorro.

Sua Excelência se arvorava em dono do projeto de pesca de tubarão que daria, segundo ele, mais de mil empregos para aquela comunidade sofrida da Praia do Breu. Mentira. Eu é que fiz o projeto e apresentei ao governo. Não me gabo não, não fiz nada de mais, sou pago para isso. Nem todo biólogo como eu trabalha para os gringos, roubando nossa flora e criando transgênicos. Pelo menos eu sou uma exceção. Penso no povo e gosto dele. O povo cheira bem; a elite fede, está podre.

Vocês sabem, tubarão é pesca nobre, nosso litoral aqui está superpovoado deles, por causa do desequilíbrio ecológico, então temos mesmo de eliminá-los. E desses bichos se aproveita tudo: carne para comer, pele para fazer sapato, tripa para ração, e até os ossos servem para artesanato. Sem falar nas barbatanas que a gente exporta pros japoneses fazerem sopa e endurecerem os pintinhos. Que coisa! As putas aqui da praia fizeram para mim sopa de barbatana de tubarão durante semanas e eu permaneci meia-boca. Mas acho que é a cachaça que anda me tirando o tesão.

Aí, o filho da puta de Sua Excelência veio com essa história de que o projeto era dele. E eu iria fazer o quê? Contestar? Não tenho tribuna, não tenho assessor de imprensa, sou um merda no meio do mundo.

Por falar em assessor de imprensa, deve ter sido ele o ladrão do projeto. É que esse puto me entrevistou há dois meses, e me tirou todas as informações que acabaram por se transformar no projeto “Tubarão é a Solução”. Aí Sua Excelência assinou embaixo… Veio televisão do sul, vieram até equipes estrangeiras, de programas ecológicos europeus. Sua Excelência falava e a minha pessoa, junto com a cambada de pescadores, servia como imagem de cobertura.

O assessor de imprensa, que eu acho que é viado, resolveu tirar uma casquinha maior da mídia (como jornalista é preguiçoso, aceita qualquer coisa sem checar…) e inventou essa história mandrake de Sua Excelência fazer a primeira pesca experimental de tubarão, abrindo o projeto.

Mais uma mentira. Eu venho pescando experimentalmente há dois meses. Eu e minha canalha. Seu Zé, Arrudão e Chico Bosta. Já sabemos direitinho como abarrotar um pesqueiro de tubarão. Mas Sua Excelência declara que vai “inaugurar” a pesca…

E veio, o puto. E, a conselho do assessor de imprensa, trouxe um cinegrafista. Eu tentei apavorar os dois, contei um monte de casos de gente que virou sobremesa de tubarão no meio do mar, de naufrágios em tempestades de pesadelo, falei até da Cobra d’Ouro, a serpente marinha que andou devorando alguns caíques por aqui. Eles não desistiram. Mas a cara do cinegrafista não me enganou. ‘Esse corno vai enjoar’, pensei. E minha primeira providência foi jogar fora os remédios para enjôo. ‘Quero que esses putos vomitem a alma’.

E lá fomos para o mar. No primeiro balanço, o cinegrafista desmontou. Sua Excelência estava agüentando bem, mas quando a terra firme desapareceu de vista, e ficamos nós, o mar e Deus, eu senti uma certa angústia no olho do escroto.

“Você sabe, doutor”, ele me disse, e acho que já havia esquecido até do meu nome, “eu tenho compromissos à noite, não podemos ir muito longe, muito além… Me garantiram que com duas horas de alto mar a gente já pega alguma coisa. Para mim basta pegar um ou dois bichos. É uma pesca simbólica…”

Eu respondi “positivo”, o que não quer dizer nada, e o nojento ficou ainda mais angustiado. O cinegrafista já havia vomitado bile. Pedi a Chico Bosta para tocar mais rápido, furando as ondas. O barquinho balançava legal.

Quando chegamos ao pesqueiro, percebemos, todos nós da equipe, que tubarão não iria faltar. Sua Excelência e o cinegrafista doentinho nem se deram conta.

E aí eu apelei, piscando o olho para Seu Zé e Arrudão. “Bem”, eu disse, “agora é hora de jogar o sangue.”

“Jogar o quê?”, quis saber Sua Excelência.

“Sangue de boi. Para atrair os bichos.”

Dito e feito. Cheiro de sangue morto enjoa e até eu me arrepio ao sentir. Sua Excelência se juntou ao cinegrafista e ficaram os dois, cada um de um lado, jogando as tripas pra fora, sujando o oceano.

E os bichinhos vieram com tudo! Nunca vi tantos juntos, a maioria cabeça chata, mas tinha tintureiro, lombo-preto… Seu Zé, que entendia muito daqueles meninos, quase não precisava de anzol para içá-los ao convés. Meia hora e já tínhamos pegado uns oito. Eles pulavam sobre o barco, tubarões são duros de morrer. Para piorar a situação, como Deus é bom, armou-se uma nuvem negra a sudeste, e eu pedi a Chico Bosta pra pôr o barco bem embaixo da maldita.

A água lavou minha alma. Era uma chuva doída na pele, e as rajadas de vento poderiam nos jogar longe, se não nos segurássemos em alguma coisa.

“Vamos morrer, não vamos?”

Eu até já me havia esquecido de Sua Excelência, um trapo molhado olhando para mim, a expressão suplicante. Perdera os óculos e, balbuciando, me avisava que o estreito porão do barco estava todo inundado.

“A coisa agora ficou preta mesmo!”, gritou Chico Bosta lá do leme, e eu não entendi se foi pra encagaçar ainda mais aqueles dois merdas ou se falava a sério. Arrudão, que tentava tirar a água do barco, era religioso e começara a rezar. Este não estava brincando. Mas eu mesmo já sofrera tempestades piores, sem comparação. Naufragara uma vez. Fora salvo por milagre.

“A gente vai morrer?” Sua Excelência perguntou de novo, o lábio inferior pendido.

Deve ser o meu coração português que fica mole nessas horas. Olhei bem para o cafajeste e gritei para que minha voz não se confundisse com o uivo do vento.

“Não se preocupe que o senhor não vai perder a porra do seu compromisso hoje à noite!”

Mas eu não tinha certeza disso.

Do livro de contos “Allegro” – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003

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A notícia nos paralisou a todas. Janaína, Maria Nery, Cássia e Valdeci: mortas. Estavam muito feridas, mas deveriam escapar: Jônia e Helena. O restante, trinta e duas moças e o motorista do ônibus, com ferimentos leves. A única pergunta que todas nós fizemos às superioras: não seria algum engano? Os mortos são sempre os outros.

A verdade é que jamais estamos preparados para uma notícia dessas. Não acreditamos nela. Um rodamoinho se instalou na minha mente. Emudeci e me escondi na capela. Olhei de lado: as outras tiveram uma reação parecida. Pensei: noviças são quase iguais. Têm mais ou menos a mesma idade. Imaginam que possuem vocação idêntica. Sofrem os mesmos condicionamentos na sua educação. É lógico que reajam tão… coletivamente.

Não, nada é lógico. Quatro meninas, quase meninas, mortas. A dor seria diferente, mais intensa, talvez, se elas fossem meninas do mundo, com amores oficializados, casamentos marcados e sonhos de organizar famílias no futuro? A nossa dor é, quem sabe, mais modesta, e previamente consolada, pois as nossas meninas mortas são (seriam) meninas de Deus. Pobrezinhas, sem amores e (podemos dizer ou é crueldade?) sem futuro.

Que horror! É claro que possuíam um futuro, coitadas, eventualmente brilhante, porque se preparavam para servir à humanidade, de várias formas, dentro de hospitais de periferia, ou até nos confins do mundo (Maria Nery falava, o tempo todo, em trabalhar na África), ou, ainda, administrando o gigantesco patrimônio da nossa organização, que não deixa de ser uma multinacional de gerenciamento complexo.

Não teriam filhos, não trocariam beijos com os homens… ou, melhor, nem isso importava, já que poderiam até trocá-los se abandonassem o claustro e mergulhassem nas ilusões que o mundo oferece além desses muros altos.

Cássia, com quem tanto conversei sobre emoções e desejos, tinha muitas dúvidas da sua função no mundo. Os confrontos políticos a atraíam. Torcia quando surgiam, na tevê, reportagens sobre movimentos populares. Ela acreditava na inevitável igualdade das classes, e até das religiões, quando todos os terráqueos se sentissem exaustos da autodestruição, por meio de bombas ou de armas mais sutis da economia. Costumava dizer, a minha colega morta, que o potencial de destruição de um banqueiro era infinitamente maior do que o de um general enlouquecido. As pessoas falam isso como uma piada, mas não é, ela explicava, com sua rara inteligência, o quanto o dinheiro do povo se presta a lucros e jogadas financeiras. Seria um gênio da oposição, essa menina morta. Talvez não convivesse conosco durante muito mais tempo. O mundo lá fora a exigia.

É engraçado como, nessas horas, a minha mente, e eu desconfio que a mente de todas nós, se afasta da imensa consolação, tão grande como teórica, de uma vida no além. Em nenhum momento imaginei as quatro meninas a vivenciar uma realidade transcendente, como a chegada ao seio da Divindade. Talvez eu não tenha mesmo fé. Mas não sei se isso é grave. Depois de quatro mortes tão próximas, os conceitos se esgarçam e alguns podem sucumbir para sempre. A partir de hoje, eu sou outra pessoa.

Janaína é a minha dor maior. Na verdade, a minha única amiga, amiga pra valer. Talvez só eu e o confessor soubéssemos que ela estava apaixonada. Contou-me a mim, a mais amiga e confiável, os detalhes do seu sentimento, sem tocar no nome do ser amado. E eu a respeitei, não lhe fiz perguntas. Apenas indaguei a mim mesma: um dos técnicos em computação, que nos visitam freqüentemente? O coordenador do curso de Letras? O leiteiro? Ou alguém que ela conheceu numa visita à cidade, dentro de uma livraria, talvez?

Não me interessa, sobretudo agora. “Eu não entendo como um pecado”, ela me dizia, de olhos brilhando, “mas como um milagre que tomou conta de mim e me faz sentir viva, parte do mundo, porque essa é, também, uma linguagem carnal.”

Seria mais fácil afastar-se do desejo, pensei, mas Janaína valorizava mais o lado espiritualizado da sua paixão. Seria melhor que ela sentisse o apelo da carne, como se dizia antigamente, o impulso de entregar-se, como uma fêmea em ânsias, ao desejo do macho exasperado, repetindo a Natureza.

Por que ela jamais me contou quem lhe falava a linguagem do corpo?

Quando tento responder a essa pergunta, a minha dor progride e me toma por inteiro, projetando-se no meu próprio futuro. Ao me eleger confidente, até com certa insistência, Janaína poderia estar-me dizendo que não havia propriamente alguém amorável fora da nossa comunidade; que o Amor estava à sua frente: eu.

A mim, então, que jamais tive sensibilidade suficiente para assimilar linguagens sutis ou intensas, que fui privada pela Natureza das armadilhas do irracional, agora só me resta perplexidade, além da dor.

Pior: estou me culpando de ser a perfeita, a verdadeira e incorruptível menina de Deus. O que há de errado em mim que não me permite sequer correr o risco de cair nos regalos da carne, e, talvez daí, nas trevas exteriores, como os outros?

Do livro “Allegro” – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003.

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A festa na rua me enojou. Tive mesmo vontade de vomitar. Ouvi gente dando vivas ao presidente, como se ele tivesse algo a ver com o time campeão do mundo. Até o craque preferido do general, um sujeito esquisito chamado Dadá Maravilha, nem pisou em campo. ‘Não vai ser fácil fazer esse povo ter consciência dos seus direitos, e ensiná-lo a construir o futuro’, pensei. Mas, em seguida, ocorreu-me a ideia de que a cidade de São Paulo não tinha a exclusividade dessa alienação. O povo dançava e cantava em todo o território nacional. Tricampeonato do mundo. Bom, não era pouco.

Esta cidade, imaginava, talvez fosse a que melhor aceitaria a nossa Revolução Popular. Era um lugar onde todo mundo trabalhava, e muito, o tempo todo. Luxo, só na elite. A maioria das pessoas, burgueses inclusive, pensava apenas em progredir. Aquilo me impressionava. E não era reação de nordestino classe média. Conheci outras cidades grandes. Estive em Milão, até, num congresso da UNE.

A vibração de São Paulo mexia muito comigo, as pessoas correndo de lá pra cá, todo mundo tentando executar com capricho suas obrigações, atendendo rápido nos restaurantes populares, nos cafés. Descobri que até os mendigos eram mais objetivos, pediam e não ficavam olhando pra sua cara, como quem diz “filho da puta burguês, não pode me dar um tostão?” Nada. As pessoas os desprezavam e eles partiam rápido para outras. Cidade incrível.

Os companheiros me diziam que o Rio, sim, era politizado. E eu pensava comigo: com toda aquela gente escrota, pelada, passando o dia inteiro na praia? A Revolução Popular teria de ter muito cuidado, no futuro, para não ser avacalhada por lugares como o Rio e Salvador. Todo mundo me advertia, “olha, não generaliza”, mas o Brasil da beira mar sempre me pareceu indolente, falso e reacionário.

Eu chegara há duas semanas a São Paulo com ordens expressas de me isolar em uma quitinete de um bairro chamado Aclimação. Um “aparelho”, como a imprensa apelidava esses esconderijos. Cabo Genro, meu chefe imediato, só me revelara, genericamente, a missão: uma ou duas apropriações, ou assalto a banco. Treinara durante três meses em uma fazenda do norte de Minas e, por causa da missão, fora obrigado a adiar uma viagem a Havana, onde iria me aprimorar no manejo de outras armas. Mas eu me virava muito bem com a metralhadora Ina. E ainda metia uma 45 por baixo da cintura, do lado esquerdo.  “Eu faço o trabalho em São Paulo e depois vou a Cuba, Cabo Genro. Não fico chateado, não.”

O Cabo, que talvez tivesse escolhido esse nome de guerra por ter sido, no passado, um militar modesto, era um pai para todos nós. Duro, exigente, até grosso, mas um pai.

 

 

Giovanna eu vi no meio da feira. Ali mesmo, na Aclimação. Ela se virou pra mim, pediu troco para uma nota de dez. Eu tinha, dei. Ela não passava de uns vinte, vinte e um anos. Mignon, magra, olhos negros enormes.

Ela: “Oi”.

E eu: “Oi”. Poderia ter-lhe dito: “eu já não lhe fiz o favor, troquei o dinheiro? Menina: sou um guerrilheiro e não tenho futuro pra você, tão linda que é, franzina, mas expressiva, expondo essa boca vermelha que promete beijos especiais”.

Como posso explicar uma coisa dessas? A visão de Giovanna, desde aquele primeiro momento, me despertava a vontade de sexo, algo louco, automático, eu me excitava mesmo, pra valer, olhando seus cabelos escuros penteados de lado, a curva terna dos seios sobre a blusa azul claro. Havia acabado de conhecer a moça e já experimentara a primeira ereção, em sua homenagem. Pensei: ‘estou carente demais’.

“Tá sempre por aqui, comprando?” Ela.

“Não, é a primeira vez”.

“Não se envolva”, dizia o Cabo Genro. “Um soldado é mais forte do que um santo”.

Eu não era bem assim. Alucinado pelos olhos negros da moça, me deixei levar por ela, naquela primeira vez, até o grande jardim do bairro, um parque imenso com lago que servia a namorados e babás. Uma semana depois já trocávamos beijos de fogo, ela dizendo que não entendia o que lhe estava acontecendo, tão recatada, e eu, já com ciúmes, achando que seria apenas uma de suas trepadinhas pequeno-burguesas. Mas eu corria perigo: durante os dois anos de treinamento fora celibatário; nós todos, os companheiros, concordáramos em não levar mulheres à fazenda; e não havia como procurar profissionais nas cidades próximas. Enfim, estava mesmo descompensado. De sexo e de amor. 

E já me apaixonara por Giovanna. A ponto de visitar sua casa singela, com quintal, e conhecer seus pais, filhos de imigrantes italianos que conservavam, até nos pequenos detalhes, toda a mística do país de origem. Enquanto meus companheiros não me contatavam, eu ia bebendo aquele vinho honesto, na mesa alegre, ao som de tarantelas, e, reservadamente, sob o caramanchão, acariciava, sugava, comprimia os seios da minha amada.  Houve uma tarde em que lhe tirei a blusa, completamente, e corremos grande risco.

“Amore mio”, ela me dizia baixinho no ouvido, enquanto se deixava possuir por meus dedos loucos, nem um pouco incomodada com meu apetite agressivo. Havia um quarto de despejo, nos fundos. Giovanna arrumou um colchão velho, não sei onde, e pudemos nos despir. 

“Não é mais virgem, Giovanna”?

“Ninguém mais é virgem”.

Reagi feito criança, fiquei meio quieto, mas não quis lhe perguntar sobre o número um. Na minha terra não seria tão simples, mas aqui em São Paulo, não.

Menti, a ela e aos pais, dizendo-lhe que preparava o vestibular de Direito e que não a deixaria visitar meu apartamento (“é pobre e tenho vergonha”), enquanto ela me levava a conhecer sua enorme cidade, do Zoológico ao Pico do Jaraguá, do estádio do Pacaembu ao centrão, no Pátio do Colégio. Mas gostava da zona chique. Era fascinada por uma loja de roupas, Marie Claire, e sonhava vestir um daqueles conjuntos elegantes. Que eu jamais lhe poderia dar. São Paulo (e essa descoberta foi inquietante) começava a me encantar com seus cheiros. Claro, eu me fixava na colônia de capim-limão, ingênua e nostálgica, que Giovanna usava.

Foi em São Paulo que fui obrigado a usar batom de cacau, pela primeira vez, porque meus lábios se rachavam com o frio; tive de vestir pulôver e ainda uma japona por cima. Vi-me no espelho da casa de Giovanna com toda essa roupa e gostei de mim. Fiquei preocupado com isso.

Nos fins de tarde, um odor mais profundo, de vaga fumaça, me enchia os pulmões e, por algum motivo que jamais soube explicar, me deixava feliz. E nem me senti estranho quando Giovanna me apresentou à Galeria Metrópole, perto da Rua São Luís, de apartamentos imensos onde a elite morava e curtia seus vícios. A Galeria, com um cinema confortável e alguns bares, fazia desfilar uma alegria supérflua e frouxa, mas eu já não tinha forças para odiá-la.  Tinha gente famosa por lá. Uma tarde, vi Milton Nascimento sentado em uma das mesas, parecendo um pouco triste.

 

 

Certo dia, chegou um companheiro, um tal de “Regente”, lá no apartamento, e se identificou segundo o combinado com o Cabo Genro.

“Os quadros da organização estão sumindo”, ele disse. “Tem lido os jornais? (Não tinha). Caiu muita gente no último mês. Precisamos de recursos. Você vai ter de cumprir sua primeira missão. Mas vai ser só você e uma cobertura…”

“Qual o objetivo?”

“Um banco na Rua dos Pinheiros”. Deu-me um papel com o endereço, horário, outras indicações.

“Onde encontro a cobertura?”

“Na hora, lá mesmo.”

“Não tem perigo da meganha aparecer? Seremos somente dois…”

“Confie, né? O Cabo Genro que mandou.”

A apropriação aconteceria às onze da manhã de uma terça-feira. Seríamos dois homens contra uma multidão de clientes imprevisíveis, sem contar a segurança armada. Muito arriscado. Na segunda à noite, véspera da missão, quebrei todas as regras e levei Giovanna ao meu aparelho. Mas tive o cuidado de esconder a Ina, a pistola, as caixas de balas e umas bananas de dinamite que guardava para qualquer imprevisto.

Ela olhou a quitinete sem móveis, com o colchonete no chão, disse-me que eu precisava de um pouco mais de conforto. Caímos no pobre leito e logo fugimos dele, rolando sobre o piso, animais alegres, eu cada vez mais intrigado com a fome de amor da minha amada. Fizemos o que nem eu conhecia. Ela comandava. ‘Onde aprendeu tudo isso? Será que houve muitos caras além daquele primeiro que a inaugurou?’ No fundo, eu me envergonhava dessas considerações, afinal machistas, e me sentia incapaz de qualquer outro sentimento que não uma espécie de encanto demente, quando ela repetiasono tua, sono tua, sono mille volte tua…”

No dia seguinte, não apareci na Rua dos Pinheiros.  

 

 

Foi muito dura minha conversa com o Cabo Genro. Disquei o número de telefone que havia decorado e que só poderia usar uma vez, segundo o trato. Meu velho líder estava irreconhecível. Me chamou de sacana e filho da puta umas dez vezes. Eu poderia ter dito que adoecera, uma febre súbita, e por isso não apareci no banco. Mas, de que adiantaria?

“Isso deve ser puta, isso deve ser puta!”, ele esbravejava no telefone. “Você se corrompeu, cachorro! Se aburguesou! Não toleramos traição, você sabe!”

“Puta é a sua mãe, velho corno!”

 

 

Agora estou aqui, olhando as manchas no colchonete que me despertam o êxtase e me deixam em transe, sentindo que talvez seja possível viver outra vida que não esta, tão falsa e provisória, suicida; talvez revele meu verdadeiro nome a Giovanna, além de confessar que se ela não repetisse tanto “amore mio, amore mio, amore mio”, eu não teria me transformado em um desertor, um rato, um filho da puta infiel. Ou talvez não diga nada, assuma os documentos falsos e morra para a vida revolucionária. Tenho sentido a sensação estranha de que, ao apaixonar-me por Giovanna, passei a gostar de mim mesmo, e muito, de um jeito que jamais imaginara.

Não estou bem. Minha cabeça não funciona direito. Há dois dias não apareço na casa dela, na verdade nem saio deste aparelho e não sinto o cheiro esfumaçado da cidade. A qualquer hora, alguém vai tocar a campainha. Pode ser Giovanna, com sua respiração curta de paixão. Pode ser um mensageiro do meu velho líder quase pai. Não vão me justiçar sem que eu reaja. Tenho amores a defender.    

 

  

 

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 Lá estava o moreno, ali no canto da sala de espera, com a mão na boca, cabisbaixo. Valéria, dentista de classe média, de bairro emergente, não tinha hora para ele, mas sempre morreu de pena das dores do povo. A secretária, com seu horário de seis da tarde vencido, também se apiedara dele: “atende, doutora…”

Valéria, na verdade, não se sentia exatamente feliz por tratar de dentes elegantes, trocando cáries irremediáveis por lindas porcelanas. Para ela, odontologia era um trabalho de sobrevivência, e só. Dava para manter um apartamento, um automóvel e viajar de vez em quando. Muita gente sonharia com isso, mas ela achava muito pouco. Gostaria de fazer algo real, social, que lhe desse o prazer da solidariedade. Desde criança, a humanidade lhe parecia o objetivo maior. Votar não bastava.

Pelo menos andava dando sua colaboração de dentista numa organização religiosa, aos sábados de manhã, o que lhe minorava as culpas sociais. Naqueles dias, voltava para casa sorridente, dormia um pouco à tarde e reunia-se com os amigos à noite, bebericando um pouco de vinho. Vida besta.

Definitivamente, não teria horário para o moreno dolorido. A não ser que passasse das nove da noite. Mas, coitado, ele ali, meio caído de lado na poltrona, a mão direita na bochecha; quase não entendeu o que ele falou. Apenas um balbucio: “dói muito”. O moreno usava camiseta, calças de vincos permanentes e tênis. Deixou-o por último.

Já passava das oito da noite quando o mandou entrar. Estava virada para a cadeira, higienizando-a, quando se assustou com a batida da porta e o ruído da chave na fechadura. Estavam completamente sós, ali. Chegara, finalmente, o momento que ela mais temera nos últimos anos.

Era um homem muito jovem e muito feio. Antes que ele dissesse qualquer coisa, Valéria perguntou, impassível:

“Vai querer dinheiro ou sexo? Dinheiro tenho algum aqui, mas sexo não posso lhe dar. A não ser que você queira ir pro céu.”

O homem perdeu a iniciativa, mas puxou o revólver da cintura, coberto pela camiseta.

“Vou comer você todinha…”

“Olha, cara, até que eu gostaria que alguém me comesse todinha. Estou no atraso há mais de seis meses. Ninguém quer comer aidético, sabia?”

“Você está mentindo, sua vaca! Quer me enganar…”

Valéria sentiu um certo tremor na voz dele; a mão com o revólver balançou um pouco. Ela se manteve com a mesma calma.

“Posso abrir aqui, a gavetinha? Quero lhe mostrar uma coisa. Não tem arma aqui, tá certo? Posso? Obrigada.”

Puxou, devagar, um vidro de remédio importado.

“Está vendo aqui? É isto que é o AZT. Tome, dê uma olhada.”

Ela pôs o vidro no balcão, próximo dele. Ele olhou, sem jeito.

“Você está me enganando, sua vaca…”

“Tá bom, então vamos tirar a dúvida com alguém. Se eu ligar para meu médico, você vai continuar a dizer que eu estou lhe enganando. Então pegue aí o telefone e ligue você para quem quiser. Pergunte que remédio é este…”

Houve uma pausa de séculos. Havia uma raiva frustrada nos olhos do homem.

“Esperei duas horas e meia por você, sua puta…”

“Já não sei mais o que dizer, cara.”

“Quanto você tem aí? Tem dólar?”

“Quem vai guardar dólar em consultório, hem? Tenho algum, mas é dinheiro normal, não é muito, mas também não é pouco.”

Devagar, acercou-se de uma outra gaveta, e pegou um envelope cheio de notas. Alguns clientes, que preferiam pagar assim, haviam quitado naquele dia suas dívidas. ‘Pode ser minha salvação’, ela pensou.

“Está aqui, rapaz. Lamento muito. Se você quiser, posso lhe dar uma carona. Onde você mora?”

A sombra negra no rosto do homem foi-se dissipando.

“Pode deixar. Não caio nessa. Depois, é um lugar perigoso. Eu vou de ônibus.”

O moreno saiu quase se desculpando. Ela desabou na cadeira dos pacientes, as pernas dormentes, uma súbita dor de cabeça que se direcionava à coluna. Uma dor lancinante, como uma punhalada, mas passou logo. Repetiu sua própria mãe, que costumava chamar-se pelo nome, em voz alta:

“Valéria, Valéria, você se saiu muito bem como atriz do seu ato único.”

Levantou-se para beber um pouco de água. Guardou o anestésico importado que mostrara ao moreno.

“Coitado do cara”, ela disse, ainda em voz alta, “só faltou se desculpar. E esses bostas de políticos ainda dizem que as causas da violência não são sociais… O meu estuprador vai de ônibus para casa, pensando nas suas vítimas e correndo risco de assalto…”

Decidiu guardar suas opiniões para si mesma. Seus amigos a chamariam de louca, de esquerda festiva, essas coisas.

Do livro “Allegro” – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003.

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Ela já deveria ter atendido um monte de gente e talvez por isso nem me olhou direito.

“Pois não…”, disse, meio distraída, ajeitando umas fichas na gaveta da mesinha. Eu permaneci calado.

“Pois não”, repetiu, e levantou os olhos, encarando-me. Gosto de ser encarado. Ela sorriu um sorriso débil. Deveria estar mesmo exausta. Esse pessoal caridoso trabalha o dia inteiro e estica a noite atendendo a gentalha. Ela:

“Por que o irmão veio nos procurar? Todos os problemas são resolvidos por Jesus. Todos.”

“O meu, não sei não.”

“O seu, o meu.” Apesar de murcho, o sorriso era bonito. Dentes grandes, gengiva bem vermelha. “Jesus resolve o problema de todo mundo, irmão.”

Suspirei fundo, como quem procura coragem.

“Até o problema de alguém que matou sua própria esposa?”

No começo, silêncio. Mas os olhos dela se abriram mais, encarando-me com aflição. A boca estremeceu, de forma sutil. E aquela expressão de cansaço sumiu de repente. Eu me agitei na cadeira, eu era gozo puro. Ela olhou para os lados, discreta, onde uns outros dez voluntários ouviam misérias.

“E isso…”, ela conseguiu balbuciar, “já faz tempo?”

Olhei o relógio, disse: “Duas horas e meia, mais ou menos. Deixei o cadáver lá e vim.”

“Pra cá, diretamente?”

A voz dela se elevara um pouco.

“Dizem que aqui as pessoas entendem a gente…”

Longa pausa. Agora, os lábios da mulher (uns trinta anos, gostosinha) tremiam como se fizesse muito frio.

“Jesus entende a todos nós”, ela ainda disse, engolindo em seco. Súbito, pôs a mão na boca. “Desculpe, não estou me sentindo bem…” Levantou-se, trôpega. “Desculpe, preciso ir ao toalete…”

Fechei os olhos. Atingira o máximo da excitação. “Grande garoto!”, eu me disse. “Teu desempenho foi perfeito!”

Aí me lembrei de outros momentos, bons e maus, em que exerci minha arte.

No Centro Espírita da Zona Leste, eu:

“O tal do maníaco que já matou dez mulheres não é quem a polícia está pensando. Sou eu.”

“Muito prazer. Eu me chamo Nossa Senhora de Achiropita”, disse a quarentona de olhos azuis. Uma mulher sisuda, fechada, sem dor. Admito: eu vacilei.

“A senhora não acredita em mim?”

“Não. Já me apareceram uns três caras dizendo que são o maníaco. Fora os outros que passaram pelos meus colegas. Mas, se quiser conversar sério, estou às ordens. O senhor, pelo jeito, precisa mesmo de ajuda.”

Aquilo foi uma lição. Aí eu decidi aprimorar a técnica, ser perfeito na minha arte.

Na Igreja do Cristo Redivivo, eu:

“Desculpe se estou chorando (estava). Sabe, sou gay. O meu marido acaba de morrer de um vírus terrível. Não pense que é Aids. É o vírus Ebola. Ele pegou na África. Acho que me contaminou. Vai contaminar o Brasil. Meu Deus…”

A mocinha, bem nova mesmo, com as últimas espinhas da adolescência no rosto, não entendeu direito. Eu repeti. “Estávamos casados há vinte anos. Nos conhecemos em Paris. Alfredo.”

Ela não conseguiu falar direito. Olhou para mim como se pedisse socorro. Pedia socorro. Levou um tempo assim.

“Sinto muito…”, foi a única coisa que disse a coitadinha.

“Eu também”, respondi. Estava excitadíssimo. É uma sensação de liberdade, de plenitude – só os deuses a conhecem.

Que magia, que delícia! Mas não procuro padres católicos, eles se escondem por trás de telas. Seriam os primeiros a tremer. Eu quero encarar. Quero olho no olho. Ver o outro sem saída, gente se engasgando de medo de mim.

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Toda a família dera graças a Deus: após anos de internações por alcoolismo, perda de muitos empregos (chegara a perder, até, um emprego público), lágrimas e dor dentro de casa, com os filhos adolescentes revoltados, os irmãos ajudando com as despesas, muita novena e promessas, Yuri conseguira se acertar na vida. E tudo isso por causa do japonês.

Mestre Nagayama, como era chamado, muito mais do que um patrão compreensivo e generoso, era um verdadeiro guru para todos os seus empregados. Quando aceitou que Yuri tomasse conta da contabilidade da sua pequena indústria de produção de patinetes, foi logo avisando:

“Tomei informações do senhor e sei que tem problemas com a bebida, mas que é um profissional honesto. Se me permitir curá-lo do seu problema, seu emprego estará garantido. Se não, o senhor já sabe o que vai acontecer: o mesmo que ocorreu nos outros lugares onde esteve.”

A postura direta e generosa do novo patrão mexeu com os brios de Yuri e ele aceitou tentar curar-se. Já tentara de tudo, inclusive os Alcoólicos Anônimos, mas nada dera certo. Epifânia, sua mulher, perdera qualquer esperança, arrumara um jeito de faturar alguma coisa, vendendo perfumes naturais, do contrário ela e o casal de filhos iriam de vez para a miséria.

A transformação do ainda jovem contador foi pouco mais do que um milagre. Epifânia, os filhos, todo mundo, ninguém acreditou, nos primeiros meses. Não que Yuri fosse agitado ou violento, não era, fazia mais o estilo bêbado deprimido, que chora e pede desculpas. Mas a sua própria situação instável o deixava com os nervos à flor da pele, gaguejando, esquecendo-se de tudo, esbarrando nas portas, mexendo sem controle alguns músculos do rosto, como um piscar de olhos sem fim.

Agora, não. Sem beber um gole, pelo menos dentro de casa, tornara-se pacífico, afetuoso, compreensivo. E até fizera amor com Epifânia, numa sessão de ternuras e delicadezas que durara uma noite inteira de sábado.

“Foi o japonês também que ensinou essas técnicas pra você?”, perguntou a esposa, alegremente exausta.

“Foi. É Tantra Yoga. Nós nos tocamos, e nos tocamos, e não cansamos de nos tocar, porque você é minha deusa e eu sou o seu deus…”

“Foi o melhor jeito de fazer, Yuri, mas eu teria ficado mais feliz se você tivesse, ham, chegado lá.”

“Não, não. Se eu chegasse lá teria desperdiçado o meu amor. Seria o fim da comunhão entre nós dois. E seria a prova de que não consigo dominar meu próprio corpo.”

“Mas eu cheguei, Yuri, e nunca senti isso antes…”

“Quero que você seja feliz”, disse ele, enigmático.

Já se passara um ano de paz em casa e Epifânia participou à família, filhos inclusive, que o marido estava curado. Ganhara até um aumento na empresa, apesar da conta da livraria, um absurdo, e só de livros de meditação, espiritualismo, budismo, yoga.

Yuri evoluía mais. Tentava convencer os filhos sobre as excelências de um tal Quarto Caminho, mas não teve muito sucesso, assim como não conseguiu levar Epifânia às reuniões regulares do Grupo do Lótus Cambiante, presidido pelo genial Nagayama, cujos empregados acabavam de ganhar um prêmio de produtividade da Associação das Pequenas e Médias Indústrias. “Usamos técnicas de meditação transcendental”, ele explicara ao maior jornal da cidade, muito interessado no assunto. Na foto do grupo de meditação, lá estava Yuri, na primeira fila.

O contador, agora, pedia a Epifânia que liberasse o quarto de casal durante duas horas por dia, pois ele estava tentando mais uma técnica espiritual de equilíbrio psicossomático.

“Mas, meu amor, está tão bom assim… Você é outro homem com essas novidades todas, não precisa fazer mais nada.”

“Querida esposa: não há volta neste meu caminho. É a minha evolução, estou cuidando do meu futuro espiritual…”

Pelos livros que andava lendo e por algumas conversas ao telefone com outros adeptos, Epifânia e os filhos descobriram que Yuri tentava chegar à levitação, naquelas horas em que se recolhia ao quarto.

Certo dia, Ramiro, o filho mais velho, chegou pálido junto à mãe, que via televisão na sala, expulsa do seu canto preferido.

“Mãe, mãe, eu… estava olhando o pai pela fresta da janela…”

“O que, Ramiro, você fez isso?”

“Fiz, mãe, desculpe, mas é coisa mais séria, mãe: o pai está suspenso no ar lá dentro. Está a uns dez centímetros do chão…”

“Mentira.”

“Juro, mãe, juro. Vai lá ver.”

“Eu não. Eu respeito a privacidade do seu pai.”

Tempos depois, Epifânia respondia com alguma tristeza a quem da família perguntasse se tudo continuava bem entre eles. Ela mordia o lábio inferior (seu jeito de demonstrar preocupação) e balançava a cabeça, afirmativamente, mas não convencia. Estava tudo ótimo, ela dizia; melhor impossível, na verdade. Yuri é que andava bastante diferente. Os gestos cada vez mais lentos, harmoniosos. A fala mansa e cheia de pausas. Agora só comia arroz integral, verduras e frutas, perdera mais de vinte quilos e ganhara uma saúde inabalável. O lado afetivo, bem, desse ela não podia se queixar, mesmo. Mas alguma força superior se apoderara dele, força do bem, é claro, pois ele andava, assim, alheio ao que não fosse sua obrigação para com a família e a evolução do eu superior.

Ela não sabia se explicar direito, mas sentia que Yuri não conseguia pôr os pés no chão (literalmente, até) e isso não poderia ser, na verdade, o melhor dos mundos. Não combinava com a humanidade das pessoas e muito menos com a crueza da cidade. Talvez um pouco de boemia, de sacanagem, até uma certa inconseqüência, fizesse bem à vida dele e da família. Mas já perdera as esperanças.

Do livro “Allegro” – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003.

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A secretária do Instituto de Testes Vocacionais (Intevoc) olhou sorrindo para mim (sorrisos, odeio sorrisos).

Nem Ciências Exatas… disse ela, mordendo a tampa da caneta esferográfica (uma porca)…

“… nem Biológicas!”

Deu uma risadinha fina e eu, não suportando, lancei-a a três metros de distancia, no chão, com um murro no seu rosto. Ela caiu de pernas para cima, ostentando o fundilho fummée.

“Oh…”, ela fez, tentando se levantar, querendo consertar os óculos partidos. “É exatamente isso! É isso!”

Levantei-a pelo pescoço, o rosto dela arroxeou todo (havia só uma pequena circunferência marcada, do murro) e ela ainda gemeu: “É isso, acertamos…”

“O quê? O quê? O quê?”, eu disse, mordendo a língua, a língua sangrando e eu cuspindo sangue na cara da mulher. “O quê? Hem, sua vaca?”

“Sua única vocação”, disse ela estrangulada, ainda segura por minhas mãos enormes, “é para o homicídio profissional . . .”

Fiquei surpreso e larguei-a. A secretária jogou fora os óculos, tirou outros da mesinha (onde também havia um pronto-socorro portátil) e, ainda sorrindo (sorriso deformado pelo inchaço, já não me irritava tanto), completou:

“O senhor é a pessoa mais agressiva que já passou pelo Intevoc. Por favor, vá correndo procurar o Sinexin (Sindicato dos Exterminadores Independentes), vá correndo… Agora!”

E, ao dizer isso, aproximou seu rosto espancado do meu e suplicou, com cheiro de Halitol (odeio perfumarias).

“Me mata agora, bem. Me mata.”

Um clip, que eu já havia transformado em arma com minhas mãos nervosas, foi-lhe enfiado no pescoço, à altura da jugular. A secretária caiu, sangrando, exclamando na agonia: “Meu amor…” (Mas que ódio!)

Sai do Intevoc derrubando a porta com os pés. O Sinexin ficava a alguns quarteirões. Com um paralelepípedo, que apanhei na rua para qualquer eventualidade, esmigalhei o crânio da mulatinha que me veio vender pentes (tenho ojeriza a gente pobre e de cor parda); imobilizei o guarda de transito da esquina, tomei-lhe o revólver, pedi que ele abrisse a boca, ele abriu, e eu descarreguei o revólver dentro. Ouvi as pessoas comentarem perto:

“É um Exterminador! De berço! Dos bons! Incrível! Chuchu-Beleza!”

As pessoas estavam encantadas e eu muito orgulhoso. Enfim, sabia, tinha certeza da minha verdadeira vocação.

O prédio do Sinexin, como você sabe, imbecil, é uma fortaleza blindada com o robô Armando à porta. Armando engatilhou sua metralhadora, acendeu as luzes e perguntou, com a voz de fita já meio estragada:

“Falar com quem? Falar com quem? Falar com quem?”

Saltei de lado, com minha agilidade nata, a metralhadora disparou automaticamente, matando pelo menos quinze pedestres. Com aquele mesmo paralelepípedo amassei a velha lataria de Armando. Ele caiu, só uma luz vermelhinha ficou piscando, mas a fita não se danificou.

“Falar com quem ? Falar com quem ? Falar com quem?”

Irritadíssimo com aquela ladainha nos meus ouvidos, evitei o elevador e subi as escadas de mármore, dois degraus de cada vez. Cheguei ao décimo andar em alguns minutos e nem estava cansado (não fumo, não bebo, não jogo).

Havia uma porta de jacarandá anunciando: Presidente. Num impulso inconsciente (quase todos os meus impulsos são assim), tentei derrubar a porta, não consegui, fui tomado de fúria absurda. Fiquei como um tonto, um louco, procurando no chão alguma coisa pesada, para derrubar, ou forçar, aquele impedimento (não posso ser impedido). Mas a porta abriu-se sozinha e o Presidente apareceu, portando uma metralhadora igual a de Armando. Eu já o conhecia de fotografias nos jornais e da tevê.

“Você é brilhante”, disse-me ele, e a voz também me pareceu gravada. (Seria um robô, talvez?]

Fiquei muito feliz e preocupado ao mesmo tempo porque senti que o elogio destrói  90% do meu potencial agressivo. Então reagi:

“Brilhante é sua mãe, corno safado! Chupador de buceta! Cara de sapo! Cocô de galinha!”

Ele repetiu “você é brilhante”, enquanto arremessava, com um gesto de mágico, quase imperceptível, um punhal sobre o meu peito. Por um segundo, eu me senti como uma câmera de Cinema Novo (e logo eu, que odeio o Cinema Novo!), meus olhos acompanhando a queda do meu corpo, rodando pela sala, fixando um detalhe aqui, um relógio de ouro na parede, o pedacinho do carpete queimado de cigarro, eu morrendo no duro, e os arrepios da morte lembrando sensações esquisitas do tempo em que eu comia (ugh!) mulheres, e o Presidente do Sinexin, com a voz sumida (em off, em off) afirmando que, realmente, eu sou um gênio, uma capacidade, um exterminador nato, eu sou Jesus, Jesus!

Do livro “Leonora Premiada”, Editora Duas Cidades, São Paulo, 1974.

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O sujeito bateu no portão que o professor Bernardo mandara gradear na semana passada, depois que assaltaram a venda de seu Quinha, na esquina, a uns cem metros dali.

“Vim desentupir a fossa. Aqui é a casa de…”

Não conseguiu completar: Varão, o mestiço de boxer com mastim napolitano, saiu desajeitado da sala e voou sobre o portão; o homem, certamente, chegou a sentir o hálito de Tutancamon que o bicho exala. É um fedor tenebroso, raro.

“Seu Benardo, pelo amor de Deus!”, o homem deu um salto pra trás, enquanto Varão, enlouquecido, tentava abrir as grades com os dentes. “Fiquei com taquicardia, aqui… O senhor não pode criar uma fera como esta em casa.”

“Eu não sou Benardo, sou Bernardo, um erre antes e outro depois. Cala a boca, Varão! Chispa pra dentro de casa!”

A metade boxer de Varão sempre obedecia. O problema era quando o cachorro assumia seu lado mastim: não havia quem o fizesse mudar de idéia. Foi assim quando ele abocanhou a enorme batata da perna de dona Rosinha, sogra do professor. Cinco pontos no pronto-socorro e uma inimizade para sempre.

“Puxa, seu Benardo”, continuou o sujeito do outro lado da grade. Seu carteiro ainda está vivo? E aí, vai limpar a fossa ou não? Se for, vai ter de prender o Totozinho.”

“Por que o senhor não chama as pessoas pelo nome? O cachorro é Varão. Eu sou Bernardo.”

“Tô me lixando se é Varão ou Maricão, porra! E como é que fica a limpeza da fossa?”

“Ó mar da marejada/ ó mar de plenilúnios, moluscos e marolas/ garbosa e guapa vaga irrompe/ lava a crosta, retorna e se repete…”, recitou o professor, de olhos sem expressão voltados para um céu que ele nem via, por causa do telhadinho que mandara fazer para proteger o novo portão.

“O que o senhor disse, meu senhor?”, perguntou o homem, mais calmo e bastante embaraçado.

“Nada. É somente um poema. Meu.”

“E o que cacete isso tem a ver com a fossa?”

“Calma, seu, seu…”

“Borrachão. Chama logo pelo vulgo.”

“Muito próprio. Mas, é o seguinte: quando sinto o estresse me invadir, como aconteceu agora, eu simplesmente me largo do mundo e recito um dos meus poemas…”

O homem balançou a cabeça, mais constrangido ainda, e baixou ao chão o material que levava numa espécie de saco, às costas. Resolveu fumar um cigarrinho.

“Me desculpa, seu Benardo, mas qual é a profissão do senhor?”

“Professor.”

“De escola do Estado?”

“Sim. Por quê?”

Borrachão não pôde deixar de rir. “Está explicado”, disse.

“O que está explicado?”

“O senhor é funcionário público. Tem tempo de fazer essas coisas que o senhor falou aí. Mas, por favor, seu Benardo: tem limpeza de fossa ou não tem?”

“Não tem.”

“Como? Eu fui chamado pra isso! Peguei um lotação pra chegar até aqui. Investi uma fortuna. Estou deixando de atender outro cliente. Por que me chamaram, então?”

De repente, olhando para Borrachão através da grade, o professor teve a inquietante sensação de estar preso dentro da sua própria casa. A violência da cidade exigia não só aquelas grades como justificava toda e qualquer atitude defensiva. A um custo muito alto. Como perder a amizade da sogra por causa de um cão de guarda. Esse pensamento o arrepiou e ele deixou sua mente voar. O outro reagiu de imediato.

“Ei, você fez uma cara agora de quem vai falar aquelas coisas de novo…”

“Não, não vou não, esqueça. Seguinte: não vai ter limpeza de fossa porque não tenho mais um tostão no bolso. E só recebo sexta-feira que vem.”

“Sabia que você ia me convencer a receber com pré-datado. Vamos fazer assim: metade hoje e metade na sexta-feira.”

“O senhor não entendeu, seu Borrachão. Não posso pagar. Deve ter sido Marília, minha mulher, que chamou o senhor. Ela errou, reconheço. E não pode nem lhe pedir desculpas, foi levar as crianças pra vacinar.”

“E eu fico como? Sem trabalho, perdi o tempo, a passagem… Estou aqui há quinze minutos atrás dessa grade, o cachorro quase me comeu e o senhor nem me convidou a entrar.”

“O senhor vê. Vida de merda.”

“Merda o senhor vai ver quando sua fossa arrebentar. Sabe que tem gente que desmaia quando o cheiro de merda é muito forte? Aquilo são gases quase venenosos.”

“De certa maneira, seu Borrachão, eu já estou nadando na merda.”

O professor disse isso como uma defesa, sem a menor convicção. Estava vendo, na sua mente, a massa de matéria fecal arrebentando o cimento, extravasando, invadindo o quintal, fazendo submergir as mudas de árvores frutíferas que sua consciência ecológica havia insistido em plantar, apesar dos protestos das crianças que reivindicavam o espaço para brincadeiras. A bosta subindo e invadindo a casa pela cozinha, as cadeiras arrastadas, ele e Varão, em pânico, escalando a cômoda, de narinas inflamadas; Varão, com seu olfato privilegiado, chegava a ganir de desespero.

“Ah, mar dos ancestrais/ medusas abissais/ e o monstro da maldade, escamas sublevadas/ cetáceos dilacera e polvos e sereias/ seus olhos verde-musgo garantem que a Morte/ é única verdade/ é meta e esperança…”

O professor Bernardo gesticulava agora, agitado, ao ritmo dos seus próprios versos. Varão se aproximou, tímido, sacudindo o rabo. Borrachão recolheu seu material, não sem uma certa angústia, olhando o professor com piedade, e deu meia-volta em direção do ponto do lotação.

“Não deve ser fácil ganhar o que ele ganha”, resmungou para si mesmo. “E eu, que deveria ficar com raiva, ainda vou embora de coração apertado.”

Durante muitos dias, o bombeiro não conseguiu tirar da mente a figura do monstro da maldade, de olhos verde-musgo, a garantir que a Morte é a única verdade.

Do livro “Allegro” – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003.

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(Minha mulher sentada na cadeira de balanço, a mesma em que eu morri do coração. Dunga, à sua frente, observando-a com o cansaço habitual, a língua pingando saliva. Minha mulher roda nas mãos o meu revólver calibre 22, cano médio. Ela está muito magra, sem peitos, e a perna esquerda inchada de filariose. De vez em quando levanta os olhos para o cachorro.)

“Dunga, meu filho, cachorrinho bom… você comeu hoje? Foi pouco, não foi, Dunga? Mas o que eu posso fazer? O instituto está pagando uma miséria… seu tio Eufrásio, lá na Bahia, ninguém sabe dele e mesmo que eu soubesse não ia pedir nada, a gente morre de fome, Dunga, mas não pede nada a ninguém… a ninguém, está ouvindo?”

(Minha mulher chora. Com um lenço, que é mais um trapo, bordado em ponto-de-cruz, enxuga os olhos, calmamente. Funga.)

“Não posso me esquecer dele. Dunga. Já fiz tudo: não posso. Você ainda se lembra dele? Claro que se lembra vocês dois eram tão amigos…”

(Levanta-se com dificuldade, põe o revólver em cima da mesinha ao lado, vai para o nosso quarto. O cachorro lambe as patas dianteiras. Ela volta com uma fantasia colorida, amarela, vermelha e azul, de cetim.)

“Você se lembra disso, Dunga? Foi quando ele tinha um ano e meio, só um ano e meio, você não era nascido, agora você está velho, seus dentes estão caindo… Mas você se lembra disso? Foi no carnaval de 1944, a gente estava nesse tempo na Boa Vista… não se lembra não, cachorrinho? Guardei isso mais de quinze anos…”

“Ele morreu tão moço… meu irmão Alberto morreu com vinte, da Espanhola. Dunga, você sabe o que é a gente criar um filho único todo esse tempo, fazer tudo por ele e agora um satanás matá-lo sem nenhuma piedade, sem pensar nesta velha acabada? Mas pra que o satanás fez isso, Dunga? Você veja: ele podia ter dado uma surra no menino, podia ter dado parte à polícia, ter feito qualquer coisa, mas matar o meu filho… o único… o meu querido…”

(Minha mulher volta a usar o trapo, agora soluçando, sacudindo os ombros. O cão vai saindo, devagar.)

“Dunga, aqui!”

(Ele volta apressado, procura uma posição mais cômoda, boceja gemendo fino.)

“Cachorrinho… preciso falar com você, preciso falar com alguém, você não entende? Você não entende que eu não posso viver só? Se Jerônimo estivesse vivo ele teria se vingado, tenho certeza! Não era homem para aguentar que lhe matassem o filho e ficar sem fazer nada. Você não gostava muito de Jerônimo, não era, Dunga? Eu sei, ele batia em você, às vezes sem necessidade, mas não era ruim, você sabe que ele não era ruim, tinha só os estouros, depois se desmanchava em mil desculpas… Olhe Dunga, vou lhe dizer uma coisa, mas fique entre nós; é isto: Jerônimo tinha complexo! Sabe por quê? Porque eu era preparada, tinha curso, falava bem francês, tocava piano… Você sabe quem papai era não sabe? O Desembargador Braga, homem formado, ilustre! Se ele estivesse vivo também nada disso estaria acontecendo… Não digo que ele tivesse mandando matar o escuro, não era homem para isso, era um homem teórico, escrevia bem, era muito lírico. Mas ele, mesmo com diplomacia, não deixaria impune aquele diabo, como os advogados querem fazer. O último jornal já disse que é quase certa a absolvição do escuro. Isso é uma injustiça. Dunga, que clama aos céus…”

(Minha mulher brinca com a arma, rodando o tambor, pondo e repondo balas, examinando-as demoradamente. O cachorro continua imóvel aos seus pés, o focinho apoiado no chão.)

“Dunga, às vezes penso, quer dizer, eu não só penso como tenho certeza: a culpada disso tudo foi aquela menina, irmã do escuro. Aquela triste provocou isso tudo, cachorrinho, a culpada foi ela, pode crer. Ninguém a chamava prá cá. Outra coisa: pros dez anos que ela tinha, era muito sabida. Eu sabia o que ela falava com Maria, a lavadeira, coisas que com vinte anos eu nem sequer pensava, coisas horríveis! Dunga, você não tem assim a impressão de que foi ela que provocou o meu querido? Ela só tinha dez anos, mas com um corpo de mulher, quase. Os seios já estavam pontudos e sabida como era… Você repare, ela mesma é que marcava a hora em que meu querido estava em casa para vir mexer com ele, brincar, naquele agarramento… Olhe, era ela mesma que vivia dando beijo nele; mesmo quando ele estava estudando, ela ia em cima, em cima… Você sabe o que é homem, não é, Dunga? O meu querido não devia ter feito aquilo, foi errado, eu reconheço, mas homem é assim… Até seu Jerônimo não andou se enfeitando praquela empregada que a gente teve na Rua Imperial, aquela menina de quinze anos? Agora, por quê? Porque ela mexia, provocava! Olhe, Dunga, homem é uma raça ruim, mas mulher… hum… mulher é uma desgraça! Eu sou mulher e posso falar sentada de cadeira.”

(Os dois imóveis: ele deitado no chão, ela fixando os olhos nos bibelôs sobre a cristaleira, num êxtase.)

“Sabe de que eu me lembrei agora mesmo, Dunga? Da vez que aquele escuro veio aqui em casa, a primeira vez, você latiu… se lembra? Ele chegou com aqueles dentes de cavalo, atrás da menina. Ele disse: Gracinha dá muito trabalho aqui, não e mesmo? Ela gosta daqui, sabe, gosta muito da senhora, do rapaz…”

“Meu querido tratava o escuro tão bem, tão delicado que ele era, o meu querido. Convidou o escuro para aparecer de vez em quando… Ah, meu Deus, por que ele foi fazer aquilo com a menina, por quê? Mas também não precisava matar, não era para matar o menino. Ele trabalhava tanto, estudava à noite, tinha só aquela idade, um futuro pela frente, não era nenhum gênio, mas era esforçado, lia muito, não precisava matá-lo, Dunga… Lá no Riacho das Almas uma menina casou com onze anos… Pronto!”

“Se esperava mais um ou dois anos e ele então casava com ela. Está certo que ele violentou… Ela sofreu um pouquinho, esteve no pronto-socorro, mas voltou no mesmo dia, direto para casa e está boazinha por aí, andando, correndo… Quando eu vejo aquela triste passar por aqui, Dunga, me dá vontade de morrer, de matar todo mundo, de acabar logo com essa angústia… Você sabe quando é que eu vou receber o dinheiro miserável do Instituto? Daqui a cinco dias! Daqui até lá a gente tem de passar fome, viu, Dunga? Fome! Estou com cuidado em você, velhinho, você está bem velho, mas vá aguentando…”

(Minha mulher leva a fantasia de volta ao quarto, acaricia o cetim desbotado e volta com um álbum grosso de fotografias, escrito na capa: Meu Filho.)

“Aqui, Dunga, ele com dois anos, eu, de vestido branco, Jerônimo, está sério aqui, olhe, Ivaldo, Norma, Madalena, olha que bonitinho o meu querido, gordinho nessa época… olhe outra, não, aqui é só Jerônimo com a farda da Polícia Militar, prá cá, aqui papai e mamãe, olha você aqui, Dunga, novinho… a casa da Boa Vista, Ari, aquele amigo do meu querido, Zilma, Ivaldo de novo, mamãe… acho que o retrato que ele tirou comigo está solto aqui atrás…”

(Folheia avidamente o álbum até descobrir um postal entre as últimas páginas, solto. A segura com as mãos trêmulas e volta a chorar: fino, pausado, como uma criança. O cão levanta o focinho curto, estica as patas, espreguiçando-se.)

“Ele e eu aqui, Dunga. Estava mais magrinho, foi mesmo no dia em que fez dezessete. Foi lá no fundo do quintal que Ari bateu a fotografia. Me lembro que ele até lhe chamou para você posar com a gente, mas você não quis, era a família toda… Dunga! Você também é da família, é cria da casa! Oh, meu Deus, não pode ser verdade que tenham matado o meu querido. E eu nem pude vê-lo no caixão, mas você viu, Dunga. Ele estava diferente? As facadas foram no pulmão, por trás, deve ter doído muito… E eu não pude ver por causa da crise de nervos. Desde que o meu querido morreu, meus nervos ficaram arrasados, também não sei como não morri. Você sentiu, não foi, Dunga? Depois me contaram que você uivou a noite toda. Olhe, cachorrinho, eu e você não estamos muito longe da morte, não. Que me interessa mais viver? Pra quê? Não era para matar o meu querido, não era. Ele depois se casava com a menina, só esperava que ela ficasse mais velha. Também não foi tão grave assim. Disseram que ela sangrou muito, demais, eu é que não acredito, já era quase moça feita, meu filho também não era um… anormal. Eu sei disso. Não era mãe dele, não o via nu? Se dona Eunice ouvisse o que eu estou dizendo agora, nossa, ficaria escandalizada! Ah, gente imbecil, sem educação, sem cultura, ainda bem que tirei aquele curso, hoje ninguém diz, assim neste estado, velha, magra, doente, uma perna aleijada, ninguém sabe o que eu sei, o que aprendi, o que li, quando era moça, até a educação sexual fui eu quem dei ao meu querido, Dunga. Quando ele começou com as poluções noturnas, ficou assustado, eu expliquei a ele, falei: existem as poluções brancas, que são aquelas que vêm sem os sonhos eróticos; e as outras, como é mesmo? Como é o nome… polução branca e … não, minha memória está ruim, era boa, quando moça…”

(Mais uma vez minha mulher levanta-se da cadeira de balanço. Põe o álbum e o revólver carregado sobre a cristaleira. Arrasta-se até o quarto de novo, volta com uma toalha de mesa, amarela, de plástico. Olha para o teto: é casa antiga, de taipa, estropiada. O cachorro fica se esticando no chão, enfadado. E ela, de repente, faz uns gestos bruscos, espalha a toalha sobre a mesa e, abrindo a cristaleira, vai retirando xícaras, descansos, pratos, enquanto cantarola avé, avé, avé Maria.)

“Vou colocar a mesa como sempre, Dunga. Às vezes eu me pergunto se isso é um sonho, uma coisa que não aconteceu, um pesadelo. Você sabe, Dunga, passo a noite toda acordada, ouvindo o portão ranger, assim mesmo quando no tempo do colégio em que ele voltava tarde… Ia tão bem no trabalho, eu falei com o chefe, ele me disse: ‘o rapaz é bom, dona, pode ir longe, não se preocupe com ele’. Um advogado muito simpático, um homem fino como papai era.”

“São essas coisas que a gente não quer lembrar e não tem jeito de esquecer. Ficam martelando, batendo na cabeça, azucrinando… O que aconteceu, por umas certas coisas, eu peguei. Olhe que eu não sou mulher ignorante, fiz curso, cachorrinho, se estou neste bairro miserável, neste chiqueiro de casa é porque não tive sorte, Jerônimo não teve sorte, mas o meu querido, se estivesse vivo, tenho certeza: ele ia me tirar daqui logo, mesmo antes de se formar em engenheiro, a vontade dele… Pois é, Dunga, eu não sou burra não. Por umas certas coisinhas eu peguei tudo. A menina deve ter estado aqui no domingo em que fui a casa de dona Rita, só estava você em casa e o meu querido, não foi? Não canso de dizer que ela teve culpa também. Ficava em cima, em cima… ela deve ter feito alguma coisa mais séria e ele ter perdido a cabeça; aí, então… E o resto… quando ele viu que ela sangrava um bocado, ele quis dar um jeito, não deu, então ela deve ter gritado, sim, foi isso, ela gritou e ele correu pra rua, os vizinhos acudiram, avisaram o irmão dela, aquele escuro podre, então ele foi atrás do menino e lá perto da padaria meteu a faca nele, pelas costas, na correria, duas facadas vazando o pulmão, deve ter doído muito. E da dor ele não me falou nada pra não me magoar mais.”

“Sim, cachorrinho, sabe que o meu querido falou comigo? Ah, eu vou lhe contar! Eu nunca me meti em espiritismo, isso é coisa pra gente de baixa posição social, mas quando a carioca me falou que eu podia conversar com meu querido, por meio do espiritismo, ah, Dunga, eu não refleti um segundo. Sabe onde é? É uma casinha da Torre, perto da igreja. Uma mulher chamada Rosa, uma médium, amiga lá da carioca, ela se concentrou, rezou umas orações e depois se mexeu assim… estrebuchando, e aí disse:

‘Mãezinha… Mãezinha…’

Eu fiquei sem jeito, fiquei muda. Então a carioca bateu no meu ombro por trás: ‘É ele! É ele!’ Aí eu perguntei quase chorando, cachorrinho: ‘meu filho, você está aqui?’ Aí ele disse pela voz da mulher: ‘eu estou bem, mãezinha, estou livre, reze muito por mim, para eu ficar melhor, não foi por gosto que eu fiz aquilo, mãezinha…’ Aí, Dunga, eu já suportava mais. Perguntei, chorando ainda: ‘doeu muito, meu filho, doeu muito, as facadas?’ Eu agora digo, ele não quis me angustiar, até bom ele foi nisso: ‘não, mãezinha, não doeu quase nada…’ ”

(Ela para, uma faca lhe escorrega das mãos, cai sobre um prato. O cão se assusta. Ela está arfando, exausta, joga-se numa cadeira.)

“Ele me chamava de mãezinha, ele sempre me chamava assim, era tão carinhoso, diferente do pai. Olhe, Dunga, eu acho que sei o que foi aquilo. O rapaz não era mulherengo, era caseiro e eu tenho uma desconfiança que não disse a ninguém, vou dizer a você, agora guarde segredo: eu acho que o meu querido nunca conheceu mulher! Nunca! Ele era muito tímido, acanhado, você sabe, não teve namoradas, só um flerte com a Mariazinha, coisa de crianças, e eu digo que ele nunca conheceu mulher pelo seguinte: ele tinha o membro, sabe, o pênis, assim…pontudo, quero dizer, bicudinho feito de menino pequeno. Ele ainda tinha assim. Quando homem conhece mulher, aquela pele se retrai e deixa a cabeça do membro do lado de fora. Não sei se você me entendeu, mas é mais ou menos assim. Os judeus quando se batizam cortam aquilo. Também não sei, pode acontecer que ele tivesse fimose, que é uma coisa muito comum, mas eu acho que não, que ele não conhecia mulher mesmo. Foi por isso: ele nunca teve esses contactos, então apareceu a menina provocando, e aí… Só pode ter sido.”

“Você veja, Dunga, o jornal. Mentiu, difamou o menino, tudo contra ele, sem nem respeitar a memória do defuntinho. Veja o que aqueles demônios ainda hoje escrevem: ‘O Monstro do Motocolombó’. Primeiro que este bairro aqui ainda não é Motocolombó, e chamar o menino de monstro e contar a história errada, mentindo, só para fazer sensação… Eles são uns hipócritas, uns comunistas, gostam de fazer os outros sofrer, dizendo que quando o meu filho viu o que tinha feito quis matar a menina, que foi detido pelos vizinhos, depois o escuro viu o que tinha acontecido e passou a faca nele, mas foi por trás, na traição… O meu querido não pôde nem se defender.”

(Minha mulher se arrasta até a estante de tijolos e tábuas. Apanha um jornal, revira-o, aperta os lábios. O cão atento.)

“Veja aqui, Dunga. O advogado do escuro falando: ‘É inequívoca a absolvição de Djalma Emídio de Freitas’, diz o causídico Heraldo Roque. ‘O crime foi cometido em legítima defesa da honra e o meu constituinte encontra-se em estado de elevado moral, haja vista sua reação psicologicamente normal e humanamente justificável.’ Sei, sei. O maldito de consciência limpa, não é? Eles dizem o que querem e bem entendem. E jurei nunca mais comprar os jornais que chamam o meu querido de monstro, tarado e outras barbaridades, que a cidade toda se revoltou com o crime dele, estupro; mas quem se revoltou com o crime do mulato, crime de morte?”

(Enquanto o cachorro se espreguiça, ela amassa o jornal contra a mesa. Puxa o trapo do bolso, vai chorar novamente, a minha mulher.)

“Pronto: duas xícaras, dois talheres. É como se o meu querido viesse jantar hoje comigo. Quando ele chegava em casa você ficava tão contente, não era, Dunga? Mas eu guardei a boa pra lhe dizer agora, cachorrinho…”

(Ela curva-se com muito esforço, abraça o animal que tenta levantar-se, desconfiado.)

“Passei pela cadeia hoje, cachorrinho! Estão construindo um edifício atrás e um barulho infernal de uma máquina vai ajudar meu plano. E você acha que eles vão revistar uma velha como eu? Já está tudo pronto, já pensei em tudo. Ah, eu vivo nesta miséria, mas se enganam comigo. Não sou burra não, tenho curso.”

(Minha mulher volta ao quarto para trocar de roupa.)

“Eles estão certos, estão certos! Legítima defesa da honra, é, ele está certo, o tal de Heraldo Roque. Todos estão certos, Dunga, até o padre Moreira está certo. Você viu como ele fez cara feia para celebrar a missa de sétimo dia do meu querido? Eles pensam que eu não sei, mas eu leio os pensamentos deles todos. Na certa pensou: ‘como é que eu posso celebrar missa para um monstro, o monstro do Motocolombó?’ Não, ele não está errado. O meu querido é monstro, não é, padre vigarista? Se eles soubessem a verdade, se soubessem…”

(Ela vai apressada para a rua, seguida lentamente pelo cão.)

“Está tudo pronto, cachorrinho. A mesa posta, tudo pronto. Daqui a pouco eu chego e faço café. Só tem café e umas bananas. Você precisa compreender, Dunga, que aquela miséria do Instituto não dá pra nada. Eu só estou pensando em você, velho desse jeito, ter de passar fome. Em mim não, o que eu já passei… Bem, Dunga, eu volto. Cuide da casa. Mas, meu Deus, não é que eu ia esquecendo? Estou com uma cabeça…”

(Volta, pega o revólver em cima da cristaleira para colocá-lo, com muito cuidado, na bolsa. O cão uiva, baixinho.)

“Não se incomode, Dunga, eu volto. Mas é claro que eu volto. Ninguém vai descobrir, planejei tudo, ninguém vai saber. Que horas são? Puxa, já quase cinco…”

 

 

“Gostaria de falar com Djalma Emídio.”

“Como?”

“Djalma Emídio. O rapaz que…”

“Sei, sim, sei quem é. É coisa urgente?”

“Muito urgente. Tenho um recado do advogado dele. Sou madrinha dele.”

“Está bem, pode vir. Só que a senhora, para falar com ele, vai ter de gritar mais do que aqui. Essa máquina faz um barulho desgraçado. Lá onde o rapaz está ainda é pior. É preciso gritar, bem alto. A senhora quer vir?”

“Não tem importância, eu…”

“Oh, desculpe, É negócio particular, não? Sim, a senhora disse, coisa do advogado. A senhora é madrinha dele, não é? Olhe, pode ficar tranquila. Esse rapaz já está solto. Aposto que vai ser por unanimidade. O que ele fez eu faria, qualquer um faria, minha senhora. A senhora não se preocupe com isso. Sou capaz de apostar. Quem mata um tarado daqueles não merece nem ser preso. Faz um bem à sociedade, não seja por isso que a senhora vá se preocupar. Olhe, eu tenho uma menina…”

“Por onde é mesmo que se vai?”

“Ah, sim, é por aqui. Olhe, a senhora dobra à esquerda e vai embora. É a última cela do lado direito. Ali, no lado direito, lá no fim. Pode ir. A senhora entendeu o que eu disse? Eu já estou rouco de gritar por causa dessa máquina.”

(O policial leva-a pelo braço, até a metade do corredor. Ela agradece, segue sozinha.)

“Meu Deus, acho que estou ficando doida. Não me lembro nem do nome do escuro e esse diabo chamando o meu querido de monstro, culpando o menino. Nem ele sabe de nada. Ninguém sabe de coisa nenhuma. Eu achava mesmo que não ia ficar boa do juízo, por causa desse barulho… a cabeça rodando, rodando… Cadê Dunga? Mas Dunga não ficou em casa? Você parece que está doida mesmo, velha! Ah, é aqui.”

“Escuro! Dunga! Ei, Dunga! Dunga!

(O homem levanta-se da pequena cama, vai até as grades, tenta identificá-la. Devagar, ela abre a bolsa, retira o revólver. O homem joga-se no chão.)

“Você sabia demais que ia morrer Dunga! Pensou que ia ficar assim? Toma outra, escuro! E ainda quis escapar, hem? Por baixo da cama… Outra! Eu não sabia que este gatilho estava tão emperrado; também, fora de uso, essa dormência nas mãos… Outra! Escuro! Eu acho que você já se acabou, demônio! Mas talvez eu tenha mais uma para você, cachorrinho…”

(Minha mulher acaba de honrar o nome da minha família. Agora é a minha vez de ajustar as contas com esse filho da puta. Aqui.)

Do livro “Querido Senhor Assassino” – Editora Símbolo, São Paulo, 1979.

 

 

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