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Posts Tagged ‘Integralistas’

Eu tinha curiosidade de conhecer o grande cineasta Asperceulta, sim, até para lhe perguntar se Asperceulta era nome, apelido ou brincadeira. Sempre me fascinei com pessoas que conseguiram ficar famosas usando um nome só. Como Cher, a atriz. Mas, na hora, acabei nem me lembrando disso.

Foi um encontro muito tenso, o nosso. Estou longe de ser um grande escritor, sei disso, mas sou muito cioso da minha pobre obra. Não poderia ser diferente com o conto “Integralistas”, do meu livro de estreia, “Povo de Deus”, que se encontra temporariamente esgotado. A editora já me havia comentado que Asperceulta tinha a intenção de fazer um filme inspirado em “Integralistas”. Assim, quando ele me telefonou, pedindo um encontro pessoal, “entre treze e quatorze horas da próxima quinta-feira”, eu já me invoquei. ‘Como ele sabe que vamos resolver o problema em uma hora?’, me perguntei.

O viado (nossa… que agonia, de piercing na língua) chegou de carrão cor-de-rosa e secretário particular, mais gay do que ele. Não aceitou água, nem café, fez cara feia para Gandhi, meu labrador, e a primeira coisa que disse foi: “Vamos tentar resolver essa pendência rapidinho…”

“Não sei o que dizer, senhor Asperceulta, porque, para mim, não há pendência alguma. A única coisa que sei é que o senhor estaria interessado na minha história ‘Integralistas’”.

“É fato.” (Ele iria repetir “é fato” muitas vezes, num cacoete.) “Na verdade, já estou com a produção bastante adiantada. A única coisa que me falta é a sua liberação. Afinal, o senhor é o autor da história…”

Disse a última frase como se lamentasse profundamente esse detalhe.

“É muita confiança do senhor adiantar tanto o seu trabalho sem saber se eu vou liberá-lo ou não.”

Houve um silêncio mais ou menos longo. Chamei Gandhi para lhe fazer um carinho. Gandhi deu o seu salto característico, na minha direção, enquanto a bichona do secretário do cineasta gritou um “aiii” de afetado pavor.

“O senhor não sabe que labradores não atacam seres humanos? A não ser que o senhor não se enquadre nessa categoria…”, sorri, fingindo bom humor.

Asperceulta me encarou, juntou as mãos em prece, suspirou fundo, como se eu fosse a causa dos seus males, e disse, pausadamente:

“De fato, de fato. Eu gostaria de fazer tudo certinho, tudo direitinho, e conto com o senhor… O senhor escreveu uma linda história, foi a história que eu mais amei nos últimos anos, e eu quero, quer dizer, gostaria de saber o preço dos direitos autorais para cinema. E se o senhor me permitiria usá-lo como personagem.”

“Como assim?”

“Bem, na minha história, o escritor é quem narra, para que o público entenda que ‘Integralistas’ não passa de um sonho…”

“Só se for na sua história”, eu rebati. “Na minha, os fatos são reais. Os integralistas realmente tomam um bairro da cidade, imaginando iniciar uma revolução. Os livros de ‘História Nova’ mais sofisticados, mais verdadeiros, contam o episódio com alguns detalhes. O que se passou dentro de uma das casas, que é a minha história, foi uma vivência do meu pai criança. Ou seja, não é sonho porra nenhuma. É fato verídico narrado como literatura…”

“Mas o senhor romanceou bastante, não romanceou?”, disfarçou Asperceulta, enquanto seu secretário não tirava os olhos apavorados de Gandhi.

“Claro que não. É matéria de memória.”

“O personagem Aparício, que imagino seja o seu pai criança, foi macho daquele jeito mesmo? Enfrentou os integralistas de peito aberto?”

“Lógico, seu Asperceulta. Naquele tempo os homens eram machos desde pequenos.”

O cineasta não acusou o golpe; pelo contrário, sentiu-se muito à vontade.

“Mas os integralistas eram tão maus assim?”

“Maus? Integralista é fascista, é quase nazista, o senhor não sabe?”

“É fato. Eram maus, perversos, os integralistas. Mas existe a Estética do Mal, o senhor há de convir…” Olhou para o secretário particular. “Me ajuda, Néri, me ajuda a definir os figurinos que criamos, as camisas verdes em vários tons, como se houvesse uma hierarquia no sonho do escritor…”

Néri não se atreveu a dizer nada, só de olhar a minha reação. Levantei-me de um salto, até Gandhi se assustou.

“Senhor Asperceulta”, rosnei, como se fosse o Gandhi, “se o senhor quiser transformar o meu conto numa grande viadagem, terá de pagar muito caro…”

“Quanto?”

Vi, de relance, o brilho pragmático nos seus olhos.

“Duzentos mil dólares. Sem impostos.”

“São quase quatrocentos mil reais, então…”, ele rebateu.

“Trezentos e sessenta mil reais”, reforcei, abrindo a porta.

“O senhor é desprendido, não? Está correndo o risco de perder um bom negócio.”

“Caia fora antes que eu aumente.”

“É fato: o senhor é intratável.”

Estava tremendo quando fechei a porta. Abri um litro de uísque, que havia me prometido evitar até o fim de semana, enchi meio copo, peguei o gelo, usei somente uma pedra. O primeiro gole já me aliviou. Depois, Gandhi completou o remédio, lambendo-me as mãos, como sempre fazia quando eu ficava muito nervoso.

“Sabe, Gan, eu continuo negando tudo o que defendo. Recebi duas pessoas que me queriam profissionalmente, coisa que jamais acontece, e que iam me pagar por uma história que não vale nada no mercado, que ninguém lê e não lerá jamais. Que importa o que vão fazer com ela? Se querem delirar, danem-se. Eu não posso me comportar como um fascista.”

Gandhi sempre foi o meu melhor conselheiro, o meu grande amigo. Os olhos compassivos e a grande língua vermelha me responderam de pronto: “Liga pra eles e pede desculpas.”

“Assim também é demais, Gandhi. Mas vou pensar.”

Do livro Allegro – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003.

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