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Archive for janeiro \23\-03:00 2014

Pediram-me para receber Sua Excelência com tapete vermelho e eu o fiz. Do meu jeito, é claro, e dentro das minhas modestas possibilidades. O chefe queria que tivesse gente no cais, na hora do embarque, que eu me virasse e arrebanhasse quem fosse, para dar volume ao evento. Eu só conheço puta, pescador e bêbado. E foram eles que levei.

Fiquei olhando Sua Excelência. Estava vestindo uma calça cáqui bem safada, dessas de lojinha, mas era nova em folha. Deve ter pensado: o povo lá é modesto e eu vou me vestir do jeito dele. Filho da puta. A camisa social parecia elegante, mas já estava meio velhinha. O cara se fantasiara de pobre! Depois da nossa pescaria, ele jogaria fora aquela roupa ou, no máximo, a entregaria ao asilo mais próximo. Cachorro.

Sua Excelência se arvorava em dono do projeto de pesca de tubarão que daria, segundo ele, mais de mil empregos para aquela comunidade sofrida da Praia do Breu. Mentira. Eu é que fiz o projeto e apresentei ao governo. Não me gabo não, não fiz nada de mais, sou pago para isso. Nem todo biólogo como eu trabalha para os gringos, roubando nossa flora e criando transgênicos. Pelo menos eu sou uma exceção. Penso no povo e gosto dele. O povo cheira bem; a elite fede, está podre.

Vocês sabem, tubarão é pesca nobre, nosso litoral aqui está superpovoado deles, por causa do desequilíbrio ecológico, então temos mesmo de eliminá-los. E desses bichos se aproveita tudo: carne para comer, pele para fazer sapato, tripa para ração, e até os ossos servem para artesanato. Sem falar nas barbatanas que a gente exporta pros japoneses fazerem sopa e endurecerem os pintinhos. Que coisa! As putas aqui da praia fizeram para mim sopa de barbatana de tubarão durante semanas e eu permaneci meia-boca. Mas acho que é a cachaça que anda me tirando o tesão.

Aí, o filho da puta de Sua Excelência veio com essa história de que o projeto era dele. E eu iria fazer o quê? Contestar? Não tenho tribuna, não tenho assessor de imprensa, sou um merda no meio do mundo.

Por falar em assessor de imprensa, deve ter sido ele o ladrão do projeto. É que esse puto me entrevistou há dois meses, e me tirou todas as informações que acabaram por se transformar no projeto “Tubarão é a Solução”. Aí Sua Excelência assinou embaixo… Veio televisão do sul, vieram até equipes estrangeiras, de programas ecológicos europeus. Sua Excelência falava e a minha pessoa, junto com a cambada de pescadores, servia como imagem de cobertura.

O assessor de imprensa, que eu acho que é viado, resolveu tirar uma casquinha maior da mídia (como jornalista é preguiçoso, aceita qualquer coisa sem checar…) e inventou essa história mandrake de Sua Excelência fazer a primeira pesca experimental de tubarão, abrindo o projeto.

Mais uma mentira. Eu venho pescando experimentalmente há dois meses. Eu e minha canalha. Seu Zé, Arrudão e Chico Bosta. Já sabemos direitinho como abarrotar um pesqueiro de tubarão. Mas Sua Excelência declara que vai “inaugurar” a pesca…

E veio, o puto. E, a conselho do assessor de imprensa, trouxe um cinegrafista. Eu tentei apavorar os dois, contei um monte de casos de gente que virou sobremesa de tubarão no meio do mar, de naufrágios em tempestades de pesadelo, falei até da Cobra d’Ouro, a serpente marinha que andou devorando alguns caíques por aqui. Eles não desistiram. Mas a cara do cinegrafista não me enganou. ‘Esse corno vai enjoar’, pensei. E minha primeira providência foi jogar fora os remédios para enjôo. ‘Quero que esses putos vomitem a alma’.

E lá fomos para o mar. No primeiro balanço, o cinegrafista desmontou. Sua Excelência estava agüentando bem, mas quando a terra firme desapareceu de vista, e ficamos nós, o mar e Deus, eu senti uma certa angústia no olho do escroto.

“Você sabe, doutor”, ele me disse, e acho que já havia esquecido até do meu nome, “eu tenho compromissos à noite, não podemos ir muito longe, muito além… Me garantiram que com duas horas de alto mar a gente já pega alguma coisa. Para mim basta pegar um ou dois bichos. É uma pesca simbólica…”

Eu respondi “positivo”, o que não quer dizer nada, e o nojento ficou ainda mais angustiado. O cinegrafista já havia vomitado bile. Pedi a Chico Bosta para tocar mais rápido, furando as ondas. O barquinho balançava legal.

Quando chegamos ao pesqueiro, percebemos, todos nós da equipe, que tubarão não iria faltar. Sua Excelência e o cinegrafista doentinho nem se deram conta.

E aí eu apelei, piscando o olho para Seu Zé e Arrudão. “Bem”, eu disse, “agora é hora de jogar o sangue.”

“Jogar o quê?”, quis saber Sua Excelência.

“Sangue de boi. Para atrair os bichos.”

Dito e feito. Cheiro de sangue morto enjoa e até eu me arrepio ao sentir. Sua Excelência se juntou ao cinegrafista e ficaram os dois, cada um de um lado, jogando as tripas pra fora, sujando o oceano.

E os bichinhos vieram com tudo! Nunca vi tantos juntos, a maioria cabeça chata, mas tinha tintureiro, lombo-preto… Seu Zé, que entendia muito daqueles meninos, quase não precisava de anzol para içá-los ao convés. Meia hora e já tínhamos pegado uns oito. Eles pulavam sobre o barco, tubarões são duros de morrer. Para piorar a situação, como Deus é bom, armou-se uma nuvem negra a sudeste, e eu pedi a Chico Bosta pra pôr o barco bem embaixo da maldita.

A água lavou minha alma. Era uma chuva doída na pele, e as rajadas de vento poderiam nos jogar longe, se não nos segurássemos em alguma coisa.

“Vamos morrer, não vamos?”

Eu até já me havia esquecido de Sua Excelência, um trapo molhado olhando para mim, a expressão suplicante. Perdera os óculos e, balbuciando, me avisava que o estreito porão do barco estava todo inundado.

“A coisa agora ficou preta mesmo!”, gritou Chico Bosta lá do leme, e eu não entendi se foi pra encagaçar ainda mais aqueles dois merdas ou se falava a sério. Arrudão, que tentava tirar a água do barco, era religioso e começara a rezar. Este não estava brincando. Mas eu mesmo já sofrera tempestades piores, sem comparação. Naufragara uma vez. Fora salvo por milagre.

“A gente vai morrer?” Sua Excelência perguntou de novo, o lábio inferior pendido.

Deve ser o meu coração português que fica mole nessas horas. Olhei bem para o cafajeste e gritei para que minha voz não se confundisse com o uivo do vento.

“Não se preocupe que o senhor não vai perder a porra do seu compromisso hoje à noite!”

Mas eu não tinha certeza disso.

Do livro de contos “Allegro” – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003

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