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Archive for the ‘Histórias já publicadas’ Category

Seu Louzeiro chegou, sorridente, amparado pelo filho. Zé Izidro, o cabeleireiro, exultou. Os clientes andavam rareando e aqueles dois representariam um bom faturamento.  O filho viera um dia antes para negociar o corte do cabelo do pai. Agora, lá estavam, muito adiantados no horário. Zé Izidro pediu desculpas pela inevitável espera.

“Por mim, não há problemas”, disse o velho, que já passara dos oitenta. “Os mortos não têm compromissos”.

O cliente que cortava o cabelo naquele momento, seu Onofre, ia pra lá dos sessenta e não gostou nada da pequena manifestação de humor negro. “Cada figura que você arruma, não, Zé?”, ele resmungou.

E seu Louzeiro acabaria sendo responsável por um outro momento interessante, naquela tarde, ao folhear uma das revistas de mulheres nuas que Zé Izidro deixava distraidamente ao alcance dos seus fregueses, todos homens.

“Júnior!”, gritou o velhinho para o filho, que examinava um jornal do dia, do outro lado da sala, “esta revista aqui está cheia de mulher com a xoxota de fora!”.

“Vai em frente, pai”, disse Júnior, mais interessado em uma reportagem sobre fundos de investimentos. “Na revista inteira tem mulher assim…”

“Muito cara, esta revista, Júnior?”

“Baratinha. Se o senhor quiser…”

“Não, não. Agradeço.”

‘Velhinho do interior visitando a capital’, concluiu o cabeleireiro que, de vez em quando, dava uma olhada para examinar, divertido, o afã com que seu Louzeiro passava e repassava aquelas páginas coloridas. Até que chegou a vez dele.

Era um velho cabeludo e meticuloso. Gastou um bom tempo para dar as instruções de como queria o corte. Só no capítulo das costeletas (“curtas, muito curtas”) repetiu várias vezes que não conseguia mantê-las do mesmo tamanho, por mais que tentasse apará-las com o barbeador.

Quando iniciou o corte propriamente dito, o barbeiro fez a pergunta clássica:

“O senhor é daqui mesmo, do Estado?”

“Da França.”

“Ah, o senhor é francês? Mas está aqui há muito tempo, não? Não tem sotaque nenhum…”, foi dizendo Zé Izidro, convencido de que havia algo estranho com o velhinho que, com a mão esquerda, segurou-o pelo avental branco e puxou-o para si, fazendo sinal de silêncio com o dedo indicador direito:

“Sabe”, sussurrou, “meu filho não gosta que eu conte a minha vida a estranhos. Medo de sequestro. Mas o senhor, ora, o senhor é confiável. Tem cara de homem honesto. Eu voltei ontem da França. Da minha terra. Estou até meio tonto por causa do fuso horário. Mas, meu caro, vamos falar nós dois aqui, bem baixinho.”

“Tá bom, tá bom”, disse o cabeleireiro, baixando o tom. E emendou:

“Puxa, o senhor deve levar uma vida bastante cansativa…”

“Ah, não me goze… Como é o seu nome mesmo?”

“Zé Izidro.”

“Você tem nome de vinho popular português. José Izidro. Acho que existe um vinho verde com este nome. Mas, meu jovem, um homem na minha idade não tem vida cansativa. Não vai à Europa todo mês, como antigamente.”

“Ah, sim, desculpe, não foi minha intenção…”

“Foi, sim. Você me confundiu como um mentiroso qualquer. Pensou: tá aí o velho, piradão, querendo me impressionar…”

“Não, seu Louzeiro, eu…”

“Esperto, você, não? Seu… seu vinho verde!”

“Não foi minha intenção duvidar do senhor. Eu acredito, sim, que o senhor voltou da França ontem.”

“Da Bourgogne, precisamente. Andei atrás de uns grand cru. Sabe, vinhos especiais… Mas não nasci na Bourgogne, quem me dera, mon Dieu, que uvas! Que técnica! Sou de Paris mesmo…”

“Ah. O senhor entende muito de vinho, não? Eu não posso tomar. Dá dor de cabeça.”

“Me perdoe, meu rapaz, mas só se você tem bebido coisas muito ruins. Nacionais. Ou esses italianos fajutos.”

O corte seguia e Zé Izidro estava muito impressionado. Ficou em dúvida: um mitomaníaco? Teve vontade de perguntar ao Júnior, ainda grudado nos artigos de economia, se ele também estava muito cansado da viagem… Mas aí poderia perder um cliente. Tem gente que não gosta de ironias, ou de conversar sobre intimidades. O velhinho seria um grande mentiroso ou não?

“Você, pelo jeito, nunca esteve na França, não é? Nem na Europa?”

“Quem sou eu, seu Louzeiro…”

Ia dizer que só havia viajado, na vida, para Salvador, por ocasião da lua de mel, além de um fim de semana no Rio. Mas resolveu arriscar uma mentirinha.

“… pois é, seu Louzeiro, quem sou eu para ir até a França. Já em Portugal estive. Acho até que andei tomando aquele vinho verde que tem o meu nome…”

“Oh, oh”, fez o velhinho, com sotaque de Papai Noel. “Bebeu-se a si mesmo. És gostoso? Oh, oh…”

“Levemente ácido”.

“Os levemente ácidos podem ter grande personalidade. Mas os ácidos, mesmo, eu não gosto. Na verdade, você me perdoe, você é um José Izidro, mas eu não vejo muita utilidade num vinho verde. Um bacalhau, por exemplo, é melhor acompanhado por um tinto não muito encorpado.”

“Gostei muito da Mouraria, em Lisboa”, disse o cabeleireiro, lembrando-se de uma reportagem que havia visto na televisão.

“Sim… da velha rua da Palma.”

Seu Louzeiro mais uma vez puxou-o pelo avental, até que sua boca chegasse muito próxima ao ouvido direito do cabeleireiro.

“Frequentei muito a boêmia da Mouraria, com meus amigos franceses. Cheguei a fazer a corte sabe a quem?”

“Nem imagino”, disse o outro, desvencilhando-se com alguma dificuldade. Bem forte, o velhinho.

“Catarina Dumond”.

“Ah, conheci muito, da última vez que ela esteve no Brasil”, retrucou Zé Izidro, que jamais ouvira aquele nome antes.

A partir daí, silêncio. O cabeleireiro achou que havia ido longe demais. Seu Louzeiro ainda assobiou uma canção antiga, disse “pardon”, enquanto pediu, com um gesto, uma outra revista de peladonas. Devorou-a, como a uma guloseima. Depois exclamou “d’acord, d’acord”, quando Zé Izidro perguntou, ao pai e ao filho, se haviam gostado do corte. Júnior fez um gesto de positivo com o indicador, de longe, e pagou em dinheiro, com uma boa gorjeta.

O velhinho teve alguma dificuldade para descer da cadeira: a perna direita ficara dormente. Ele não havia ultrapassado a porta do salão, quando comentou com o filho, em voz mais ou menos alta:

“Você se lembra, Júnior, da Catarina Dumond?”

“Não, pai, não tenho a menor ideia”, respondeu o filho, sempre paciente. “Algum problema com ela?”

“Não confie nas mulheres, Júnior. A Catarina esteve no Brasil e não me disse nada.”

O filho, carinhoso, ainda pediu que ele não se envolvesse tanto com “essas histórias todas que o senhor mesmo inventa”. Seu Louzeiro reagiu, irritado, dizendo que a ele soava como uma ignomínia o pai ser chamado de mentiroso pelo próprio filho. Júnior pediu desculpas.

“Eu não quis dizer ‘inventa’, pai, mas ‘recorda’.”

“Ah, bom”, resmungou o velho, voltando a assobiar “Cuore Ingrato”, uma canção italiana antiga.

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Minha função é falar, mas entro mudo e saio calado no novo emprego. Simplesmente porque não há com quem conversar. Não tenho colegas. Jamais pensei que fosse trabalhar assim.

Fui obrigado a aceitá-lo porque umas fantasias começavam a rondar minha mente e eu me via vendendo balas nos faróis.

Foi Adroaldo que me descobriu, ou seja, descobriu minha voz. Liguei para ele, amigo novo, mas dedicado, perguntando se sabia de alguém que precisava de um auxiliar de enfermagem. Estava topando até pajear velhinhos. O dinheiro havia acabado. Já vendera um relógio antigo da mãe. Sou religioso, temo a Deus, mas não tivera retorno de nenhum pedido que fizera ao Divino.

Adroaldo não respondeu de cara; achei estranho. Levou um tempo e disse:

“Quer repetir?”

“Repetir como?”

“O que acabou de perguntar…”

“É brincadeira?”, ainda perguntei, antes de repetir o pedido.

“Você sabe que possui uma voz bastante expressiva?”, admirou-se Adroaldo. “Eu não havia reparado assim, ao vivo. Agora percebo. Mas é no telefone que sua voz arrasa.”

“Eu?”

“Você. Bem, tenho uma indicação. Mas precisamos conversar antes. Pessoalmente. Só nós dois.”

Imaginei que Adroaldo iria me oferecer um bico de narrador de propaganda política; as eleições estavam chegando. E ele é ligado ao pessoal da oposição. Tudo bem, desde que eu ficasse escondido em algum lugar, porque sou excessivamente tímido.

Marcamos num bar da esquina de casa às nove da manhã. Ele chegou, olhou o ambiente, vazio, por sinal, mas disse que preferia conversar em local mais reservado. OK. Pegamos um ônibus até a zona sul. Sentamos lá atrás. O cobrador fez uma cara estranha: acho que pensou que éramos caso.

“O que vou lhe dizer ficará eternamente entre nós, meu velho. É coisa de irmão pra irmão. Você não poderá tocar nesse assunto nem sob tortura…”

“Preciso de dinheiro, Adroaldo. Só não roubo nem faço michê.”

“É um serviço novo que tem aí. Reservadíssimo. Você fica no telefone…”

“Falando sacanagem pras solitárias? Pras bichas? Saquei.”

“Não é nada disso. É… parecido. Primeiro que os clientes são escolhidos na elite, o preço do minuto é muito alto. Depois, não há propaganda do serviço. É tudo boca a boca. E a regra principal é justamente a privacidade. Se ganha bem. Mas você tem de passar no teste com seu Piva.”

E lá fomos, em direção a um bairro de classe média muito, muito alta. Chegamos a um casarão. Não sei como o Adroaldo se meteu com essa gente. Fomos recebidos por uma secretária branquela, sem pintura, com uma roupa negra elegante que não lhe mostrava sequer os joelhos. Se dissesse que aquilo era um templo disfarçado, eu acreditaria.

Esperamos um momento numa sala de móveis metálicos, sem cinzeiros. Eu já não fumava havia anos, mas não deixava de perceber quando os anfitriões frustravam os viciados. Achava engraçado. Novos tempos.

Seu Piva chegou de terno e gravata, ambos azul-marinho. Alto e magro. Poderia ter quarenta e oito ou sessenta anos, não dava para ter uma ideia. Cabelos pintados com o cuidado de deixar alguns fios brancos. Não sorria. Tinha sotaque do sul. Talvez do Paraná.

Adroaldo me apresentou rapidamente e saiu. Achei-o respeitoso demais com seu Piva, que me ofereceu a mesma cadeira onde eu estava, com um gesto elegante, educado.

Ele explicou, com voz pausada, que vivíamos num mundo complexo, onde o dado comum era o excesso de individualismo, o que vale dizer, solidão. Concordei com a cabeça. E a solidão, ele continuou, não escolhe classe social, ou melhor, talvez os ricos e os quase ricos sejam mais solitários do que a maioria pobre. Também concordei.

“E nós nos propomos”, ele concluiu, “a aliviar um pouco essa carga dos infelizes”.

Tudo bem. Mas aí vinha o “como fazer”.

Seu Piva possuía uma fantástica capacidade para envolver pessoas. Ou tudo o que ele falava era a pura verdade. Eu só concordava. Ele explicou que a maioria das pessoas confunde necessidade de afeto com sexo. E que, através do sexo, que seria a forma mais animal da satisfação da necessidade de afeto (aí não concordei, exatamente), as pessoas se sentiam plenas por algum tempo, o suficiente para que pudessem tocar suas vidas, sem antidepressivos ou mesmo drogas pesadas.

Era inevitável a pergunta: “e eu, como entro nessa?”

“Não sei se você entra”, disse seu Piva. “Vamos testá-lo de várias formas, se você o permitir. Seu timbre de voz é perfeito. Calmo, bondoso, carinhoso. Acredito que você fará sucesso. Qual é sua escolaridade?”

“Formado em enfermagem. Mas leio muito. Sei quem foi Aldous Huxley.”

“Maravilha.”

Os testes foram feitos naquele dia mesmo. Puseram na minha frente uma pequena e sofisticada aparelhagem de som, com microfone embutido. Alguns livros. Alguém, voz de mulher, me fez perguntas de cultura geral, pedidos para que eu pronunciasse, cheio de sentimento, certas expressões como “agora mesmo, amor” ou “eu te entendo como ninguém, querida”. Fui obrigado a ler trechos dos livros, alguns bastante picantes, mas sem baixarias. Foi cansativo, mas eu estava gostando. E ainda me serviram duas refeições perfeitas nas dez horas em que passei por ali.

Seu Piva entrou na sala, finalmente, e pediu que eu voltasse ao local no dia seguinte. Me fez jurar, uma vez mais, que não tocaria no assunto com ninguém, nem mesmo com o Adroaldo. Era a regra do “serviço”.

Cheguei a casa muito tarde, a mãe de cabelo em pé. “Procurando trampo, mãe, procurando”, ainda disse, dando um beijo na testa da velhinha. Tive a impressão de que alguém me seguia, mas depois achei que era bobagem. Me arrependi de não perguntar a seu Piva quanto ganharia, caso fosse aprovado.

E fui. Com louvor. No dia seguinte cheguei na hora certa, depois de uma viagem terrível, longa, dentro de dois ônibus. Toquei a campainha, seu Piva me recebeu pessoalmente. Desta vez, sorriu. Contido.

“O nosso modulador”, ele disse.

“De voz?”

“Sim, claro.”

Aí voltamos para a mesma sala, ele quase me tirou do sério quando me disse o salário fixo. Além da porcentagem por minuto conquistado, emprego com carteira assinada. O cargo era meio estranho, atendente eletrônico, mas dane-se.

“Você, meu caro, tem tudo para se transformar num campeão de minutos”, ele vaticinou. Poderia ter-me dado um tapinha nas costas, mas não deu.

Comecei a trabalhar imediatamente. Dava pra perceber, pelos ruídos de portas batendo, e algumas vozes esparsas, que havia outras pessoas, talvez umas vinte, andando por ali. Mas eu só tive contato, nos primeiros dias, com a secretária branquela e com seu Piva. Uma semana depois, talvez por causa da gripe da secretária, apareceu dona Flor, a copeira, com minhas sempre apetitosas refeições. Outro que apareceu foi o médico, doutor Simas, que me auscultou e me deu algumas vitaminas. Na sala onde ficava, havia cama, poltrona, cadeiras e um banheirinho. Para que eu me sentisse à vontade e conversasse com as clientes do jeito e na posição que quisesse, através de um microfone preso à camisa. Mas eu percebia que seu Piva controlava, rigorosamente, a hora da entrada e da saída. Para que nós, atendentes eletrônicos, não nos conhecêssemos. Pra falar a verdade, eu não era contra isso, não.

Minha primeira cliente deveria estar na faixa dos cinquenta, contou-me toda a vida, e eu mais ouvi do que falei. Não queria sexo. Só falar e falar. No final, me agradeceu muito e confessou que, se não soubesse das regras, iria me convidar para jantar. “A minha amizade é mais verdadeira enquanto virtual”, eu lhe respondi, e ela gostou disso. Foram duas horas e dez minutos. Segundo seu Piva me contou depois, um recorde para um novato. Nesse primeiro dia trabalhei oito horas porque seu Piva me obrigou a parar. “Vamos aos poucos, meu caro”, ele me disse. “Você está ótimo”.

As próximas clientes, todas mulheres, não foram assim tão gentis como a cinquentona que dizia se chamar Martha, com th. Fiquei assustado com o quanto as pessoas estão usando drogas nas classes mais altas e o nível de insatisfação com seus parceiros (que, imagino, estejam tão insatisfeitos como). Intuitivamente, eu caía fora das baixarias, da pornografia pura, e tentava andar por um caminho mais light, propondo carinhos juvenis, passeios por bosques de sonho, mãos dadas, essas coisas. E isso, segundo me confessou seu Piva, que gravava e ouvia boa parte das conversas, estava aumentando o tempo do serviço. Quer dizer, mais e mais dinheiro.

Dois meses depois, com o primeiro salário no bolso, algo que jamais havia ganho em toda a vida durante um ano, quanto mais em tão pouco tempo, trouxe a velhinha para um apartamento muito mais próximo do casarão, consegui uma empregada que lhe ajudasse nas tarefas de casa e passei a quebrar recordes: quatorze, quinze horas. Num dia cheguei a dezesseis e quarenta e dois, e aí me senti mal. Tonturas, um aperto na garganta. Doutor Simas veio correndo. Diagnosticou uma semana de repouso. Eu protestei, pois começava a sonhar mais alto com a grana, mas seu Piva garantiu que me pagaria a média do meu próprio tempo durante a minha ausência.

“E ainda lhe ofereço uma viagem, pelo menos as passagens de avião. Quer ir a Nova York?”

Disse que não, que preferia guardar para outra ocasião. Peguei a velhinha e fomos visitar uns primos no interior. Inventei qualquer coisa para eles, que trabalhava numa empresa de telefonia, e pronto. Vacas, galinhas, longas caminhadas: voltei com tudo.

No meu primeiro dia de retorno, deu-se a grande virada. Peguei uma figura, menina ainda, toda chapada de cocaína, querendo fazer sexo de qualquer jeito e de todas as maneiras. Aí fui levando, aqui e ali, vamos devagar, para aproveitar melhor, etc. Ouvi uns risinhos, uns suspiros. Percebi que estava num viva-voz bastante moderno, como se tivesse muitos canais. E então, aquela conversa, que se iniciou louca, acabou por se transformar num fórum de debates filosófico-religiosos. Eram cinco, ali, três moças e dois rapazes. Ninguém fez sexo. Pelo menos naquele momento pararam de se drogar. Eu sentia, com nitidez, que alguém me ajudava, internamente, lá bem dentro da mente, a dizer tudo o que disse, nas minhas modulações de voz. Eu sozinho não seria capaz de falar tudo aquilo. Nem sei repetir. Cravei cinco horas e dezesseis minutos, coisa muito rara. E quando acabou o telefonema, estava tão disposto como antes.

Dia seguinte seu Piva me chamou. Disse-me que eu era a pessoa mais importante da empresa e que, por minha causa, havia decidido inaugurar um segundo serviço de atendimento, onde as pessoas poderiam conversar sobre tudo, menos sexo.

“Você me convenceu, rapaz, que há outras formas mais inteligentes, e sobretudo mais sensíveis e produtivas, de conviver com os solitários…”

“Eu?”

“Você. E não venha me dizer que você não se dá conta disso.”

Tive vontade de dizer “mais ou menos”, mas fiquei quieto. Assustei-me mais uma vez com o novo salário, a nova participação e as novas funções. E uma responsabilidade maior, porque, no novo serviço, eu escolheria os… moduladores. Segundo seu Piva, que, mais do que um tapinha nas costas, me deu um abraço de despedida, não é todo mundo que leva uma conversa para caminhos positivos e enriquece os interlocutores com suas observações.

Desafios, agora, são comigo mesmo. Ainda assim me incomoda não conhecer quase ninguém no meu ambiente de trabalho. Mas vai melhorar: vou ter de escolher e certamente treinar os candidatos à modulação e à “divisão new age”, segundo a definição de seu Piva para o novo empreendimento. Sabe, pessoal, estou muito feliz.

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Fico olhando estas meninas, aqui no Jóquei, e não saberia dizer se as desejo ou se elas me encantam apenas esteticamente, como se eu manuseasse um luxuoso álbum de fotografias.

Acredito que não seja eu somente que, aos sessenta e seis anos, tenha perdido a noção da própria sexualidade. Pergunto a alguns amigos mais íntimos e eles revelam a mesma perplexidade. Já não sabem mais o que são: se homens ou sátiros.

As meninas, neste verão, têm-me assustado com suas ousadias: já não existe mais aquela peça tão sensual, insinuante, clássica, chamada sutiã. Elas se expressam de seios nus, de biquinhos colados aos organdis, lãzinhas ou sedas puras; as saias já não são mini, mas micro. E as atitudes deixariam envergonhada minha mulher, tida como bastante avançada, nos anos sessenta, a primeira a ensinar em uma escola de engenharia para platéias noventa por cento masculinas.

Quantos anos estas meninas têm? Dezoito, vinte e um… Não passam disso. Mas é incrível o que falam de palavrões; o jeito profissional de pegar um cigarro; o descuido ao revelar os fundos das próprias calcinhas.

Sou um homem velho, mas magro e esguio e ainda, no meu rosto, notam-se fulgores da juventude. Enfim, sou um velho bonito, como diria Carol, meu último caso extra-conjugal, morta o ano passado, coitada, de esclerose múltipla.

Talvez por isso, por essa consciência, eu não tenha feito cara de trouxa ao ser abordado por uma das meninas de álbum colorido que vejo passar, incólumes, diante da minha mesa e da minha dose light de uísque.

“Posso sentar com você?” (Branquinha de cabelos negros, sorriso infantil, cintura finíssima, bundinha empinada, coxas de aço, seios como sentinelas, camiseta distraidamente aberta, deve malhar o dia todo.)

“Claro, minha filha.” (Poderia ter dito “minha neta”.)

O garçom, muito jovem, veio correndo atendê-la, e percebi que estava especialmente interessado nos seus seios venusianos. Olhou-os do seu ângulo privilegiadíssimo, levou um tempão para escrever a bebida e salgadinhos de queijo na comanda. Não pude deixar de me irritar.

“Está com alguma dificuldade de escrever, meu jovem?”

“Não, não senhor. A caneta está falhando.”

“Sei.”

Ela sorriu para mim e para ele, como quem diz “meninos, eu traço vocês dois, é uma questão de agenda.”

E era. Não perdeu muito tempo. Agradeceu (“obrigado, guri”, ela disse… seria gaúcha?) e foi direto ao assunto:

“Sei que o senhor pode estranhar, mas sou uma menina de programa.”

Fingi, é claro, que não estava chocado.

“Ah, sim, minha menina, hoje é muito comum. Aqui no Jóquei, hoje em dia, mais ainda…” (Décadas de reuniões empresariais me fizeram um craque da desfaçatez; com meus botões estava pra morrer. Como? Uma puta, logo ali, no meu santuário social?)

“Olha, que esperto! (Fez uma cara de quem acreditara. Prostitutas são sempre crédulas, desde a Babilônia, ou não teriam escolhido aquela profissão.) E eu pensei que estava enganando bem…”

“Mas está, sim. Todo mundo acha que você é uma patricinha.”

“Sabe que até já estou me sentindo assim, tanto que me confundem com elas? E também por causa dessas roupas que visto. E, é claro, porque comecei a fazer compras nas mesmas lojas.”

“Está faturando alto, então.”

“Não posso me queixar. Pra minha idade…”

“Vai largar tudo, depois?”

“Claro. Quero ter dois filhos.”

“Já conhece o pai?”

“O pai não importa.”

Pouco antes de sofrer o meu primeiro enfarte, há vinte e cinco anos, quer dizer, antes da dor aguda, senti uma sensação estranha de alheamento, de fuga da realidade. Eu estava envolvido numa operação extremamente tensa, de compra milionária de um estoque de máquinas, não dormia há dois dias e bebia sem parar. Essa sensação voltava sempre que alguma coisa me perturbava além do normal. Foi o que comecei a sentir naquele momento: uma menina linda, perfeita, inteligente, e já destruída pelo materialismo e a usura – principais características da nossa lamentável sociedade.

“Está tudo bem, gatão?”, ela perguntou. (Eu deveria ter mudado de expressão, subitamente.)

“De onde você é, minha filha? De que bairro?”

Ela desconversou, disse que morava em um apartamento de área nobre da cidade, com mais duas amigas. Mas eu insisti e ela acabou me falando o nome de uma vila que me era completamente desconhecida.

“Jovens nos botequins jogando sinuca. Bêbados batendo nas mulheres e nos filhos. Cachorro latindo por todo lado. Garotos vendendo drogas no meio das ruas…”, eu descrevi seu ambiente.

“Onde quer chegar, cara? Todo mundo sabe como é bairro de pobre.”

“Eu acredito que você seria mais feliz, menina, se em vez de abordar velhinhos com propostas indecorosas, passasse a defender sua gente de alguma maneira, e usar sua esperteza, sua inteligência, porque você tem uma boa cabeça, para transformar aquela gente em pessoas respeitáveis. Esse caminho que você está trilhando é individualista, equivocado, e só vai levá-la à morte prematura.”

“Que é isso? Um comunista aqui no Jóquei?”

Ela sorriu um sorriso de mulher feita, gasta, como se já estivesse viciada e morta. Fiquei com pena também de mim que, a vida inteira, não fizera outra coisa além de vender, exatamente como ela, o meu michê profissional, tendo apenas como objetivo a progressão das minhas contas bancárias.

“Ei, cara, você, além de comunista, é meio louco, não? De repente faz umas caras esquisitas, tristes e alegres…”

Agora estava, sim, alegre. Descobrira, afinal, como fugir daquela sensação de alheamento do próprio corpo. Senti-me até rejuvenescido. E não iria perder jamais essa nova energia com aquela pobre menina egoísta.

“Desculpe-me, querida”, disse-lhe, com um certo carinho, “mas os velhinhos são assim mesmo, cambiantes. Por que você não pensa um pouco no que lhe falei? Eu lhe confesso que jamais disse algo tão profundo e tão útil a alguém, na minha vida, mas hoje estou certo de que, se o tivesse feito sempre, teria sido muito mais feliz. Como estou agora.”

Ela insistiu com sua expressão carcomida, levemente devassa, e eu me assustei ao perceber que a estava captando no futuro. Eu precisava fazer algo mais, inventar uma motivação mais forte para tirá-la daquela barra pesada, mas ainda não sabia o quê.

Do livro “Allegro”  – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003

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Havíamos planejado aquele mergulho fazia quase seis meses. Eu e Binho não nos separávamos, nem na escola. O padre diretor até procurara nossas mães para dizer que andava muito preocupado com uma amizade tão… estreita.

“O que o senhor está querendo dizer com isso?”, perguntou a mãe de Binho, que não gostava de padres e dizia pra todo mundo que era comunista e que, em vez de adorar santos, preferia prestar culto ‘à santa madre Rússia’. “O senhor acha que eles estão de troca-troca?”

“Eu não disse isso, minha senhora.”

“Insinuou.”

“Longe de mim. É que há tantos meninos da idade deles na escola…”

“Mas, vocês, da Igreja, são fascistas mesmo, não? Agora querem se meter na amizade dos outros? Meu filho escolhe o amigo que quiser. E o seu, Hermelinda?”

“O meu também”, apoiou minha mãe, que, no fundo, admirava a ousadia e algumas posições de dona Celsa, a mãe de Binho.

“Bem”, suspirou o padre, “já não está mais aqui quem falou. Depois, não se arrependam.”

“Arrepender de que, seu padre? Quer ser mais claro?” Dona Celsa dava sempre a última palavra.

“Com licença, senhoras, boa tarde.”

E foi assim que os padres no colégio nos deixaram em paz definitivamente. Ora, ora, troca-troca… Como se nós fôssemos mulherzinhas. Eu sabia que Binho já havia pegado o Angu, um fresco do terceiro ano, mas todo mundo pegava o Angu, atrás das mangueiras, na hora do recreio. Eu não queria saber de encoxar meninos, mas nunca comentei este assunto com o meu melhor amigo. Nós dois gostávamos mesmo era de jogar botão, empinar pipas e bater uma pelada, fazendo tabelinhas no ataque. Mas o maior sonho era atravessar o rio Cajazeiras.

Na volta da escola, uns cinco quilômetros a pé até nossa vila, a gente ia olhando e admirando o Cajazeiras. Não podia haver nada mais lindo! O rio, às vezes estranho, às vezes escuro, mas de águas limpas, escoava com rumores diversos, ora sussurros, ora alvoroços, dependendo do tempo, do vento, da chuva. Binho e eu catalogamos vinte e oito ruídos diferentes que o Cajazeiras fazia. Ele estava sempre vivo, esperto, o nosso rio, formando rodamoinhos ou pequenas ondas que surgiam do nada, de repente. No trecho mais propício ao nado, deveria ter uns quinze metros de largura. As pessoas preferiam a pesca ao banho, mas eu e Binho estabelecemos um pacto: deixaríamos de ser crianças e viraríamos homens de verdade quando tivéssemos coragem de atravessar o Cajazeiras nadando.

Ninguém, no entanto, poderia desconfiar da aventura. Muita gente já havia morrido lá dentro, puxado pelas correntes, ou por uma certa Mãe Fria, uma mulher pelada, toda nua, de cabelos muito compridos, que morava nas profundezas e preferia meninos: puxava-os pelo pé e, antes que eles se afogassem, pedia para ser tocada intimamente. Nós estávamos certos de que, se nos afogássemos, morreríamos felizes.

O plano foi sendo adiado por falta mesmo de oportunidade. Nós, além de nos atrasarmos na volta a casa, chegaríamos molhados, e alguém, talvez nossas irmãs (o Binho e eu só tínhamos irmãs) nos denunciariam. Porque entrar no rio era rigorosamente proibido por todos os pais do lugar.

Chegou um dia, no entanto, em que ninguém das duas famílias estaria em casa, na hora do retorno do colégio, por volta da uma da tarde. Era fim de inverno, o Cajazeiras andava meio nervoso, formando do nada as tais ondas, e o seu ruído principal naqueles dias era o mais agressivo de todos da nossa lista: um chachuá, chachuá intermitente, esquisito.

Nadar, a gente não nadava direito. Havíamos aprendido alguma coisa, em algumas poucas ocasiões, quando a escola ia fazer piquenique na Ilha do Ouro, um grande lago artificial que havia sido formado para a construção de uma hidrelétrica que jamais saíra do projeto. Por causa dessa obra, o povo dizia que o lugar era amaldiçoado pelo governo. Dona Celsa se aproveitava e conseguia votos para os candidatos comunistas. Que acabavam perdendo, sempre. Mas, afinal, nadar não era tão difícil, via-se na televisão, e a maioria dos garotos da cidade havia aprendido na prática, durante os piqueniques de colégio ou nas férias, no mar. Mas nossos pais não tinham dinheiro para nos levar ao mar, a mais de quinhentos quilômetros dali.

Saímos correndo da escola e chegamos bem cedo ao local da travessia. Descemos o barranco, encontramos um bom arbusto para esconder a roupa. Já estávamos com o calção por baixo. Antes de pular na água eu rezei uma Ave-Maria. Binho não rezou, não acreditava em santos, como a mãe.

Meu amigo saiu na frente, dando longas braçadas e gritos de felicidade. Eu o acompanhava, mas logo deixei de gritar, porque entrava água na minha boca. No meio do rio, não consegui manter-me em linha reta – a correnteza estava muito forte. Vi, com os olhos meio embaçados, que Binho já estava alcançando a outra margem. Fiquei muito nervoso com isso (em que direção nadava?) e perdi a coordenação dos braços. Ainda vi Binho, de pé, gritando pelo meu nome.

Entrei, então, em um mundo que jamais desconfiara existir: o tempo passava em outro ritmo, muito lento, e a paisagem do rio por dentro era ainda mais deslumbrante, de águas azuis e seixos redondos, peixes que pareciam pintados a mão, tudo em cores intensas, envolventes. Eu olhava para o peixe e me sentia um peixe; para o fundo do rio e me sentia seixo ou areia. Eu era eu mesmo, mas também o mundo à minha volta. Aquilo me deslumbrou e eu me esqueci da travessia, do meu amigo, de tudo. Olhei para um lado e vi minha mãe, muito mais moça e mais magra, dando a luz a uma criança que era… eu mesmo. As cenas foram, então, se repetindo, como em uma tela, e, apesar do tempo em volta passar lentamente, as imagens de toda a minha vida transcorriam em um outro ritmo, como se acontecessem ao mesmo tempo, apesar de eu separá-las, apreciando-as e refletindo sobre elas. Difícil explicar isso.

Aí comecei a ver o futuro. Eu acordando na beira do rio, com um monte de gente gritando em volta, eu chegando em casa na picape de seu Dutra, meio zonzo ainda, e recebendo uma descompostura do meu pai e da minha mãe. Mais adiante, eu via meu pai dentro de um trem que, de repente, transformava-se numa grande confusão de bancos voando, ferros tortos e gente perdendo braços, pernas, cabeças. Sangue por todo lado. Isso me assustou e eu gritei.

“Gritou! Ele gritou! A água saiu dos pulmões!”, berrou seu Dutra, do meu lado. Ele fazia massagens violentas nas minhas costas. Eu comecei a vomitar. Uma multidão olhava para mim, assustada. Binho chorava e dizia que a partir de agora iria rezar muito, contrariando a mãe, porque acabara de rezar por mim e conseguir a graça.

Depois aconteceu tudo como eu havia visto. “Eu já sei o que vocês vão dizer”, disse aos meus pais antes da violenta reprimenda.

À noite, tratado com chás e toalhas quentes, recebi a visita de Binho e dos pais dele que, além da solidariedade, vieram nos trazer a notícia de que haviam dado uma surra de cinta no filho. A primeira da vida dele. Binho, realmente, estava meio amuado. Aí eu me lembrei do trem, dos corpos despedaçados e de meu pai lá dentro. Perguntei se ele iria viajar de trem. “Amanhã”, ele respondeu. “Pra capital”. Caí numa crise de choro, quase histérica, e contei o que se havia passado. Ele ficou assustadíssimo e minha mãe resolveu chamar Terezona, a benzedeira, apesar dos protestos de dona Celsa, que passou a nos acusar de fanatismo religioso.

Terezona chegou correndo, ouviu tudo e sentenciou, virando-se para o meu pai:

“O que se vê na zona da morte é pra se levar a sério. Não vá.”

“E as outras pessoas que vão morrer?”, perguntou meu pai. “Como avisá-las?”

“Acho que não vai acontecer nada com elas, com trem nenhum. Aconteceria se o senhor estivesse lá dentro. Daí o aviso que seu filho recebeu na zona da morte.”

“Tá vendo, pai”, eu concluí, “se eu não fosse nadar o senhor poderia estar morto”.

Ninguém disse mais uma palavra naquela noite. No dia seguinte, a caminho da escola, depois de jurar que jamais entraríamos no Cajazeiras, Binho me encheu a paciência querendo saber o que eu havia feito com a Mãe Fria.

“Não apareceu Mãe Fria nenhuma…”

“Conta, conta: ela é mesmo bonita? Você pegou no negócio dela?”

Do livro “Allegro” – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003.

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Os dias são abafados, insuportáveis; as noites são amenas e às vezes frias. Vá entender. O tempo mudou, radicalmente, nos últimos quarenta anos. Mas os meteorologistas insistem em afirmar que não há surpresas. Tudo o que acontece agora já aconteceu décadas atrás, garantem. Pra cima de mim… Como se, décadas atrás, houvesse estatísticas.

Há uma revolução na meteorologia, eu vivo dizendo isso, mas meu pessoal prefere acreditar que estou meio pirado. É natural. Eles são habitantes do interior do Brasil, e eu, a vida inteira, andei pelas cidades grandes. A minha lógica não bate com a deles.

Pois são eles que veem, quase todos os dias, os tais dos objetos voadores. Outra coisa de que não se ouvia falar muito, antigamente. É inacreditável o número de relatos: são objetos em forma de disco mesmo, ou de pratos; são charutos; feixes de luz; cometas. Há de todos os tipos, todas as formas; provocam as mais diferentes reações.

E eu aqui, debaixo de um céu repleto de astros normais e esplendidamente visíveis. Chegando aos oitenta, mas com uma lucidez que jamais experimentei antes, lendo as almas das pessoas a partir das suas expressões fisionômicas. Um sábio. Meu corpo, é claro, deixa muito a desejar, e visito mais os médicos do que os amigos. Meus gestos são lentos. A mente é um azougue.

Deixei de ironizar uns e outros, porque eles não entendem nada, coitados. Gozando-os eu acabava tendo a impressão de que gozava a mim mesmo. Já pensou? Você faz uma piada aqui, outra ali, e seu interlocutor continua sorrindo, cândido, como se você o elogiasse. O que é o chiste, uma boutade, se o outro não entende? Aí você percebe que a única vítima é você. E decide adaptar-se ao meio.

Foi o que fiz. Sentei-me, nas noites longas, e apenas ouvi histórias. Mais de noventa por cento delas falavam dos objetos. Incrível.

A mais empolgante, no entanto, foi-me contada dia desses. Narizinho, um aqui da região, apelidado assim por causa do seu nasal exageradamente arrebitado, estava voltando do estábulo às seis da tarde, exausto da labuta do campo, quando ouviu um silvo estranho. No primeiro momento imaginou que fosse uma cobra nova, depois sentiu que não era som deste mundo. Virou-se, assustado, e bem diante dele, no chão, estacionada, como se uma carreta fosse, estava a nave. Em forma de um disco ovalado, com muitas luzes piscando por dentro e por fora. Por dentro, sim! Uma imensa porta, aberta, mostrava um interior metálico, cinza-claro; e, de pé, sorrindo para ele, um homem vestido e uma mulher pelada. Narizinho conseguiu sobrepor seu deslumbramento ao natural susto que experimentara. Jamais vira mulher mais bela na sua vida. De rosto, quero dizer. De corpo, então…

“Que é isso, sô?”, foi a única coisa que Narizinho conseguiu dizer.

Ele explicou que o homem se dirigira a ele, saudando-o, dizendo que estavam ali para propor uma experiência muito importante, um intercâmbio entre o nosso mundo e o deles. O capiau ouvira perfeitamente o que ele dissera, mas, que loucura!, o homem não abrira a boca. Continuava rindo, apenas, enquanto a mulher, ao lado, não ria, exatamente, mas expressava, no rosto, um desejo indubitável: “Eu te quero, Narizinho… Eu te quero como homem!”

Ele também a queria, como mulher, e não estava sequer preocupado ou assustado com o inusitado da situação; aquela mulher o arrebatava e o mantinha num estado permanente de êxtase. Imagine na hora de…

‘Mas como posso fazer qualquer coisa com esse cara aí ao lado?’ E, no momento em que ele formulou este pensamento, o homem se afastou imediatamente, enquanto a mulher avançou em sua direção. Mais: movimentou os braços para frente, como quem pede um abraço. Apertado. Carnal.

Narizinho me descreveu, então, o ato sexual mais completo e ardente que eu já ouvira em toda a minha vida, e olha que li a obra completa de Henry Miller. Cheguei, confesso, a experimentar uma certa memória erétil. Eu não estava sozinho naquela conversa. Do meu lado, os caipiras só faltavam pedir licença para se masturbarem. Foi uma excitação só. Eu acreditei em tudo. Mas, agora, começava também a sonhar.

“Será que eles conseguem levantar o meu pau?”, perguntei a Narizinho, ingenuamente. Ele me olhou muito sério.

“Depois que dei a terceira, doutor, a mulher me pediu licença e perguntou se eu gostaria de continuar naquele ritmo. Eu ia responder o quê? ‘É claro, gostosa, é claro!’ Aí ela foi até uma mesinha da cor do chão e do teto, pois tudo era da mesma cor, e pegou uma seringa pequenina, como se fosse de brincadeira de boneca, e disse (não abria a boca, eu ouvia tudo na mente, o que é muito mais direto): ‘Vire a bundinha, vire…’ Nem senti a picada. E logo depois estava dando a terceira, a quarta e por aí vai…”

Foi naquela noite do relato que tomei a decisão, mas levei uma semana para divulgá-la. Em meados de dezembro, não sei exatamente o dia, convoquei esse meu povo, às oito da noite, na varanda da casa. Veio todo mundo, se bem que todo mundo são dez pessoas. Até o filho de Mané Carpinteiro, de quatro anos, foi obrigado a vestir sua melhor roupa para me assistir. Aí eu subi num caixote, amparando-me no ombro dos rapazes, e fiz o meu pedido quase súplica:

“Gente, estou sabendo que os discos voadores andam sobrevoando aqui, a região, e até pousam nos pastos. Os pilotos têm convidado algumas pessoas para conhecer o avião, quer dizer, o disco. Pois bem: vocês sabem que tenho sono pesado, apesar de velho, mas se algum desses objetos baixar por aqui, mesmo que seja distante vinte quilômetros, pelo amor de Deus, meus amigos, me chamem imediatamente! Eu quero ir embora com eles!”

Eles me ouviram sem dizer uma palavra. Todos, ou quase todos, inclusive os dois adolescentes do grupo, já me haviam contado alguma história envolvendo os objetos voadores. Mas, ao me ouvir, assim, numa convocação oficial, fizeram uma cara esquisita, de frustração, e saíram cochichando.

Depois eu soube que espalharam, até os confins do Estado, que eu estava louco. Senil. “O velhinho descompensou de vez”, disseram, “agora quer viajar de disco-voador”.

São eles que contam as histórias e eu que enlouqueço. Ninguém jamais comentou que Narizinho, dando oito na extraterrestre, havia pirado. Mas aí descobri da cumplicidade que existe entre eles: histórias são histórias, não é para acreditar. Eles ouvem tudo, sérios, compenetrados, depois contam as suas, que os outros ouvem. Se acontecer de algum idiota de fora acreditar nas lorotas, melhor. Assim elas se tornam verdades rapidinho.

Hoje, quando Narizinho aparecer por aqui para trazer o garanhão que vai cobrir minha égua, vou lhe dizer que apareceu, bem na frente de casa, o tal disco oval, com a porta aberta e tudo. E aí surgiu o mesmo cara, com a mesma peladona, que logo abriu os braços pra mim.

“Coroa, você é muito mais homem do que o Narizinho…”, ela comentou, depois da décima primeira, antes do galo cantar.

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Estamos ouvindo as cançonetas nostálgicas das caixinhas de música e todos nós sentimos vontade de chorar. Somos quinze ou dezesseis (às vezes me perco) a perambular por dentro deste casarão antigo, ao qual estamos confinados por vontade própria. Gostamos daqui. Viemos para cá quando a construção se iniciou, no final do século dezenove. Nós sempre nos reunimos por afinidade, ninguém jamais nos deu ordens. Temos, em comum, o gosto pelas flores no jardim, o cheiro de tabaco, o som dos pianos de cauda tocados pelas moças mais novas, as caixinhas de música… Há uma energia comum que nos une, e eu diria que é a força do pretérito, de um mundo já superado pelos próprios habitantes da casa, que o preservaram com dedicação carinhosa e ao qual devotam toda a sua capacidade estética.

São engraçadas, essas pessoas. Nascem, crescem, desde cedo vivem na angústia e na dor, mas revelam laivos de sentimentos refinados, sofisticados, e os dessa casa só os encontram quando escarafuncham o passado… deles, porque nós mesmos não temos passado. O tempo é, para nós, uma ficção.

Somos, de certa maneira, seus companheiros de jornada. Eles não nos vêem e não conseguem nos levar em conta. Com exceções, é claro. Nós os amamos porque, enfim, é da nossa natureza amar a todos os habitantes da Concessão Física, e a nós mesmos, oriundos de outras esferas. Não estamos aqui para ajudá-los na dor da existência, e muito menos dar-lhes um norte diante da insensatez que manifestam com incrível freqüência. Poder-se-ia perguntar, mesmo, qual a nossa real motivação ao insistirmos em ocupar esta casa, na nossa forma própria, e eu diria que nada além do prazer que o passado deles nos proporciona.

Dia desses, estávamos todos (foi aí que contei uns quinze ou dezesseis dos nossos), à beira do piano, ouvindo o ensaio com que a menina Cristina nos presenteou em um final cinzento de tarde. Que maravilha! Que talento! Seus sentimentos sutis, manifestados nos seus gestos de virtuose, transformavam-se em vapores suavemente coloridos e prazerosos, tão comuns na nossa esfera, mas tão raros no próprio mundo deles; somente alguns os captam com relativa precisão.

Cristina possui um parente, o Sérgio, que produz o mesmo fenômeno ao escrevinhar alguns versos românticos que acaba por oferecer a uma mulher da noite, de um outro sítio onde os vapores têm mais peso e onde é bem mais difícil penetrar. Os sentimentos desse rapaz, contudo, fazem daqueles versos verdadeiros archotes a destruir toda a treva que envolve a vida da sua amada, e, quando ele os leva até ela, todo o ambiente ao derredor se ilumina e, por um momento, todos os presentes, gente cinza e dura, se comprazem com pensamentos de bondade e paz. (Não estão acostumados a isso).

Eles próprios, então, se assustam de cogitarem, por um átimo, em algo que não seja prazer físico e velhacaria. Mas, ali, o Bem não dura para sempre, pelo contrário. Aquela mulher pintada, contudo, vai aos poucos redirecionando suas pretensões e expectativas, diante de tanta luz emanada dos versos de Sérgio.

Um dia, temos certeza, aqueles dois se unirão em sítio próprio e terão chances de experimentar o amor, privilégio de tão poucos, aqui na Concessão. É mais fácil, para os humanos, apagar luzes benéficas, desfazer essas laborações. Eles são frágeis, imaginam-se ludibriados e traídos, todo o tempo, e por isso insistem em dominar e manipular, de uma forma ou de outra.

Nós os observamos, neutros, porque não sentimos a tristeza deles, não entendemos isso. Para nós tudo é aventura na direção do progresso. Para eles também seria… Mas, como sofrem!

E assim, para não cairmos na rotina dos comportamentos repetidos, procuramos nos acercar daqueles que se diferenciam, seja pelo gosto estético, seja pelas aspirações. A maioria dos habitantes e visitantes desta casa está mesmo a cultivar as experiências já vividas até pelos seus próprios ancestrais. Estão determinados a isso. Nada os faz desistir dessa intenção. E é aí que vamos encontrar os sentimentos mais refinados, a ingenuidade e a beleza.

Nós dissemos que nenhum deles tem a capacidade de nos ver, apenas como exceção. Pois bem: esta exceção apareceu. É Genoveva, a moça que porta acepipes. Ela agora visita todos os dias esta casa, trazendo os doces e salgados que os donos apreciam, e tem se divertido muito a nos observar, em todos os cantos. Vira-se para um e outro de nós e pergunta coisas do tipo: “Ei, pequenino, o que é que você está fazendo aqui?” Ninguém responde porque, se responder, vai acabar estabelecendo uma conexão emocional com ela, e essa gente humana, apesar de frágil, pode ser muito perspicaz e envolvente. Por outro lado, nós não temos licença para nos comunicar diretamente com eles. Incidentes aconteceram. Contaram que um de nós, perdido de encanto por um deles, respondeu ao contato, e aí sobreveio a dor eterna de entrar neste reino de agonias, onde eles se debatem. Nós não estamos preparados para as trevas.

Genoveva, de fato, é um encanto, uma luz rara que jamais conhecemos. Tenho rogado aos meus mentores que ela não se acerque de mim, jamais, e simplesmente não me dirija a palavra. Mas ela sorri, para mim e para os outros, em qualquer lugar onde estejamos: no depósito das frutas, dentro da caixa gelada onde eles guardam os alimentos, ou no meio dos vapores úmidos dos banhos.

“Pequeninos, pequeninos!”, ela nos chama (meu Deus!, como alguém pode ser tão bela?…), com sua graça de fada. “Venham conversar comigo, eu sou uma de vocês, eu entendo vocês…”

Uma de nós, será?

E, fora ela, quem da Concessão nos iria realmente entender?

Eu olho para Genoveva e fico imaginando que certas danações podem valer muito a pena.

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O homem vermelho em seu cavalo branco atravessava todo o bairro, duas vezes por dia, de manhã cedinho e no fim da tarde, oferecendo um delicioso produto: leite.
O homem vermelho era vermelho mesmo, parecia que havia saído de uma manhã na praia; diziam que aquela cor da tez se devia a ancestrais holandeses.
Para não fazer pipocar a pele frágil, o homem vermelho vestia um chapelão de abas largas, marrom-claro, até às cinco da tarde. Como usava sempre a mesma roupa, cáqui, calça e camisa da mesma cor, e botinas pretas de soldado, o homem vermelho mais parecia um dèjá-vu: todas as vezes que o víamos, imaginávamos um outro momento da vida, em um outro tempo, há três, quatro anos, porque ele era sempre igual. Isso causava uma certa aflição nas pessoas.
O cavalo branco não era um puro-sangue, longe disso, mas um belo pangaré, imenso, de crinas fartas, alvo como um fantasma, que puxava com vigor a carroça com os galões de leite e o homem vermelho em cima, guiando o veículo com maestria, batendo de porta em porta.
“Leite puro, do peito da vaca!”, gritava o homem vermelho.
Às vezes, faziam fila, com seus litros nas mãos, esperando o líquido branco, quase pastoso de tão gordo, e que desprendia um odor nostálgico de curral.
O homem vermelho sorria para todo mundo, das crianças aos mais idosos, dos deficientes mentais aos cegos. Certa vez, meu primo Antenor, que me acompanhava na fila do leite, estranhou muito uma determinada cena.
“Olha lá”, cutucou-me o meu primo, “o homem vermelho está sorrindo o tempo todo para o cego…”
“E por que ele não iria sorrir, Antenor?”
“Ué… porque não adianta.”
Um dia soubemos que o homem vermelho se candidatara a vereador pelo partido da situação. Ficamos satisfeitos: era uma pessoa que conhecia os problemas do bairro, rua a rua, que ouvia as queixas das pessoas e que, com certeza, possuía uma boa experiência em administração, já que vivia há anos da sua pequena criação de vacas leiteiras em plena cidade e da distribuição do produto. Aquela roupa sempre igual dava a idéia de um homem muito limpo. Mais: era sem dúvida um incansável trabalhador, mourejando de sol a sol – ordenha vaca, enche os tonéis, dá ração, toma banho, sela o cavalo, vende, compra ração, lava os tonéis, recolhe o esterco pra vender…
O homem vermelho foi cumprimentado por todos os moradores do bairro, recebeu centenas de promessas de apoio, e a cada dia se tornava mais risonho, mais confiante.
Veio o pleito e, após a contagem, o homem vermelho descobriu que recebera um voto. Não quis acreditar, pediu recontagem, as pessoas estavam ansiosas (“Como é? Quantos votos?”), até que um dia o homem vermelho chegou em casa com os olhos também vermelhos. Chamou Tina, sua mulher, e disse a Seramir, rapaz de quase 30 anos, filho único, muito desconfiado por causa do choro inédito do pai, que depois o chamaria também.
A portas fechadas, o homem vermelho olhou com firmeza para a mulher e declarou que preferia morrer a se sentir traído, após quarenta anos de casamento.
“Eu, trair você? Mas quem iria olhar pra mim, homem de Deus? Estou tão gorda e sem graça…”
“Eu me refiro à eleição.”
“Que aconteceu?”
“Tive um voto: o meu.”
“O quê? Foi seu nada! Foi o meu. Você deve ter errado o voto. Porque eu votei em você. Eu tenho mais estudo, não erro.”
O homem vermelho não disse mais uma palavra e foi cobrar do filho.
“Pai, eu não votei porque o senhor não iria agüentar a vida de político… Iria ficar longe da gente. Depois iria se envergonhar do curral…” (Mais tarde, o homem vermelho soube que o rapaz tomara um pileque na véspera da eleição e que acordara após as cinco da tarde, quando já se encerrara o pleito.)
O homem vermelho voltou à sua vida de sempre, vendendo o leite, só que não era mais o mesmo. Na roupa, antes sempre limpa e impecável, perceberam que algumas sujeirinhas apareciam com freqüência. O cavalo branco deixou de ser escovado e ter as crinas penteadas. Um dia o viram mancando, até, com a ferradura mal-ajustada. E o leite passou a apresentar uns pontinhos escuros muito suspeitos. “Coliformes fecais”, insistiam as más línguas.
Muita gente se perguntou o que havia acontecido, eu inclusive, e acabamos chegando à conclusão de que o homem vermelho não era tão popular assim; pelo contrário: aquela sensação de dèjá-vu que ele sempre passava o associava a fatos desagradáveis e constrangedores, como se ele tivesse o dom da onisciência e estivesse presente a todos os momentos das nossas vidas.
Mas a explicação fundamental era bem mais simples: ninguém sabia o nome do homem vermelho, e nem se preocupara em perguntar até o dia da eleição. Muita gente chegou em frente à urna, pronta para votar nele, e acabou descobrindo que só o conhecia como “o homem vermelho”.
Eu cheguei a me oferecer para dar-lhe essas explicações todas, mas quando fui procurá-lo senti um certo bafo de cachaça. Hum, era uma coisa que ele jamais fizera antes. A depressão é o mal do século, pensei. Acabei desconversando. Uma pessoa alcoolizada não compreenderia ponderações mais ou menos sofisticadas, apesar de reais, sobre o maior fracasso da sua vida.
No caminho de volta, lembrei-me de que, mais uma vez, não lhe perguntara o nome.

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Será que ele havia bebido ou cheirado alguma coisa? Ou o sucesso costuma deixar as pessoas com cara de espanto, os olhos arregalados?

Estávamos lá, eu, que sou o novelista, e Júnior, o ator, na porta do meu apartamento. Eu o havia chamado. Convidei-o a entrar. Ele se apressou, como se estivesse sendo perseguido.

“Que foi isso, Júnior? Viu fantasma?”

“Quase fui linchado, carinhosamente linchado, aqui embaixo, no calçadão. O povo me reconheceu. E acho que, na confusão, bateram a minha carteira.”

‘Que coisa’, pensei. ‘Este moleque tem pouco mais de vinte anos, era um atorzinho de teatro infantil, agora ganha uma fortuna e ainda reclama do povo, que o ama! O pior é que a culpa é minha. Fui eu que o fabriquei’.

Essas coisas acontecem muito quando se trabalha com comunicação de massas. Na minha novela, uma verdadeira bosta, assim como todas as outras anteriores, pois novela só presta para veicular anúncios e enriquecer a emissora, inventei um personagem meio doido, meio hippy, chamado Mambo-Jambo; um sujeito vazio, louco por ritmos latinos. Ajudei o diretor a escolher o ator e acabamos topando com Júnior, todo pobrezinho, tímido, com dicção péssima e presença de palco zero, mas com uma cara de cubano que justificava tudo.

Mambo-Jambo, o personagem, sujeito pobre, do morro, mantinha um namorico com Cleres, a filha mais nova do empresário Acácio (toda novela é igual). Pois bem: com dois meses de apresentação, eu já era obrigado a passar metade do tempo inventando situações para o casal, tal a popularidade deles. E aí, sem ter mais o que criar, joguei Mambo-Jambo no campo e o transformei num líder camponês, pronto para invadir as terras do próprio sogro que, naturalmente, era o maior filho da puta.

Pronto: o comportamento de Mambo-Jambo (ou Mam-Jam, como alguns fãs-clubes preferiam), passou a ser imitado na vida real: fazendas foram invadidas por todo o país e os militares que detinham o poder mandaram chamar o dono da emissora.

“Dê um sumiço nele!”, disseram a seu Feitosa, o dono, português esperto, mas ignorante que se transformara no maior empresário de comunicação do continente.

“Mas, senhores”, reagiu seu Feitosa, “em toda a minha vida jamais fiz mal a uma mosca. Digo, fisicamente.”

“Não, porra”, gritou o general Assis, segundo o testemunho de quem assistira à reunião, “não é para matar o ator, e sim o personagem.”

“Mas isto é com o Zé Oliva”, ponderou de novo o português.

Eu sou o Zé Oliva. Ex-redator de publicidade, ex-vendedor de carros, mas sobretudo ex-alcoólatra, que vendo o meu talento para enganar as massas. Seu Feitosa ligou para mim, logo que voltou da reunião, que ocorrera na capital. E foi taxativo:

“Quero que acabes amanhã com o Mambo-Jambo, ou eu estou fudido!”

Tentei convencê-lo de que seria muito pior, inclusive para os próprios militares, porque o povo não aceitaria a morte de um fenômeno de popularidade do dia para a noite. Mas seu Feitosa estava histérico:

“Olha aqui, Zé Oliva, se você não matar o personagem, eu mando matar o ator. Não quero problema com os milicos.”

“Da noite pro dia não dá”, apelei. “Tenho de preparar a morte dele.”

“Então tá bom. Uma semana.”

“Quinze dias.”

“Dez dias e não se fala mais no assunto!”, disse aos gritos o português mais poderoso do continente, encerrando a conversa.

Foi aí que chamei Júnior ao meu apartamento e o povo lá embaixo quase o matou de paixão. Contei toda a história a ele, exceto que o português havia ameaçado matá-lo de verdade.

O rapaz ouviu, pensativo. Eu já sabia que ele não era o idiota que eu imaginara, quando o conheci. Naquela época, coitado, parecia incompetente porque não havia estudado, ou treinado o suficiente. Com o tempo revelara-se com certa sensibilidade artística. Mambo-Jambo tinha muito dele. Não se é popular à-toa.

“Bem. Você está me dizendo que Mam-Jam está morto. Que posso fazer? É você que escreve a novela.”

“Não, cara, eu quero outra coisa. Eu quero que Mambo-Jambo me diga se aceita ser eliminado, assim, desta forma estúpida.”

“Não entendi.”

“Caralho: eu pensando cá comigo que você não é uma besta e você não entendeu. Eu quero a opinião do personagem, tá? Eu quero que Mambo-Jambo dê declarações sobre o perigo que está correndo.”

Júnior levantou-se do sofá, pediu licença para desligar a televisão, que ficava no mute o tempo todo, pegou um copo de água no bar, serviu-se, aí se encaminhou à sacada, olhou a inacreditável paisagem da baía, com seus milhões de luzes e, quando voltou, não era ele. Ali estava Mambo-Jambo, minha criação. Até a cor da pele era outra, trigueira e sofrida. Fiquei perplexo.

“O pai quer falar comigo?”, ele começou, com a voz e os cacoetes do personagem.

Repeti tudo o que já havia dito ao Júnior. Mambo-Jambo não conseguia pensar sem se manifestar fisicamente. Dava socos na própria mão espalmada, ajeitava as calças, fechava e abria o zíper da braguilha (gesto que levava as fãs ao delírio). Ficou assim um tempo, andando de um lado para outro.

“Pai, acho que devemos ao povo uma revolução.”

“Como é que é?”

“Vamos não só invadir fazendas como viajar até a capital e exigir que os militares organizem eleições democráticas!”

“Ah, é? E quem vai cuidar do cu do papaizinho aqui, durante a guerrilha promovida por você, Che Guevara de araque?”

“Aí é que está, meu pai”, ponderou Mambo-Jambo, “nosso país é uma grande mentira, o povo prefere acreditar nas ilusões, nossa gente admira as pessoas que aparentemente não existem, como eu, Mam-Jam.”

“Como, aparentemente?”

“Porque, de alguma forma, existimos. Eu sou tão forte que você, meu criador, veio me perguntar se deve me matar ou não. Se eu pedir uma revolução, tenho certeza de que a receberei. Você não imagina o que acabou de acontecer aí embaixo, no calçadão.”

Mambo-Jambo acabou de falar, correu até a sacada, e gritou daquele jeito que tanto influenciava os jovens da idade dele: “Vamos derrubar a ditadura, povo meu!”

Eu tinha de pensar um pouco na hipótese. Porque, na verdade, este foi o meu primeiro impulso, usar o personagem para iniciar uma reação popular contra a tirania.

Bem, se desse errado, seríamos presos, os militares invadiriam a estação, só que arcariam com o ônus da impopularidade. Matar alguém que milhões de pessoas amam? Complicado, claro. Mas poderia dar certo. Nossa moderna democracia começou aí.

Do livro “Allegro”  – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003

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É inacreditável, mas Cirley não entende nada do que eu falo. A não ser, é claro, a produção do nosso dia-a-dia, pequenas burocracias, satisfação de necessidades fisiológicas, essas coisas comezinhas.

Tentei lhe explicar o que significava Feng Shui e por que eu havia chamado aquele rapazinho bochechudo para dar uma olhada no apartamento, mas foi inútil. Para ela (é sempre assim), desbloqueio energético é o mesmo que as mandingas que seu avô fazia no interior do Paraná, quando ela era criança.

“Vai dar muito mais resultado”, disse-me Cirley (e o rapazinho olhando-a, constrangido e deslumbrado; ela encanta todo e qualquer homem), “se você meter uma espada-de-são-jorge logo na entrada”.

Por via das dúvidas, além de trocar a posição de todos os móveis, comprei a tal planta. E as coisas para mim começaram a funcionar. Acho que a espada-de-são-jorge ajudou.

Tirando essas incompreensões, minha vida com Cirley tem sido uma maravilha. Meus amigos não conseguem entender como estou vivendo com ela já há um ano e meio. Rodrigo, que me apresentou à deusa, disse-me no ouvido, logo depois que nos cumprimentamos, eu deslumbrado com seu ousadíssimo decote em V:

“Campeão, essa mulher não existe. Só um conselho: coma, mas não case.”

A elite, da qual faço parte mais por uma circunstância de família, é assim mesmo: transforma pessoas em robôs, não consegue enxergar o que os seres humanos têm de melhor, de mais profundo e abstrato. Eu pretendo ser uma exceção, e talvez por isso esteja com Cirley até hoje.

Xandá, minha ex, até hoje não suporta o meu caso com Cirley. Fui obrigado a bater o telefone, certa vez, quando ela insultou minha mulher, chamando-a de prostituta, oportunista e outras bobagens.

“Quer saber, Xandá? O pai da Cirley, fabricando sandálias no Paraná, tem mais dinheiro do que sua família inteira.”

Fui cruel com Xandá: isto não é verdade. Ou melhor: ainda não é verdade. É que seu Teotônio aumenta o faturamento a cada ano, enquanto a família de Xandá vai empobrecendo com o passar do tempo e já não consegue manter o padrão de consumo antigo. Depois, as falências, ou os empobrecimentos, também são psicológicos.

Disse-o, com todas as letras, porque este é um argumento que aquela gente entende (de repente, vejo-me, eu também, chamando a minha gente de “aquela gente”, como Cirley se refere à elite).

Mas estamos bem, sim. Não me canso de olhá-la nua na cama, seu corpo absolutamente perfeito, seus pêlos pubianos arrumados como em um jardim – e os cabelos cor de mel adornando o travesseiro.

Ela, se acorda, às vezes, percebe que eu estou ali em pose de oração, louvando ao Senhor pela genialidade com que esculpiu o ser humano, e revela sua modéstia mais desconcertante:

“Você fica me olhando aí, bobão, todo safado. Imagina se eu fosse bonita.”

Certo dia eu lhe perguntei: “Você realmente acha que não é bonita? Você pode me dizer o que falta em você?”

“Eu? Eu sou um horror! Magra demais e cheia de celulite…”

Aí não suportei. Nervoso, quase irritado, expliquei-lhe tudo o que sabia sobre escultura clássica. Fui até a biblioteca e lhe trouxe um livro de fotos de arte, mostrei-lhe as obras de Praxíteles e Fídias. Ela tentava dizer alguma coisa, eu não permitia. “Se você tivesse vivido naquela época, Cirley, esses gênios seriam mais geniais ainda, porque teriam você como modelo…” Ela me ofertava um sorriso de falsa Gioconda, porque mostrava os dentes naturalmente perfeitos, incisivos e molares harmonicamente distribuídos, dentes grandes, brilhantes – que seus lábios carnudos, carnais, carnívoros iam descortinando.

Eu fiquei exausto do eruditismo do meu próprio monólogo, ela disse qualquer coisa sobre o que sua mãe achava de homens apaixonados (usou uma expressão diferente, algo como “mais bestas do que as próprias bestas”, se não me engano) e me perguntou de chofre, sem piedade:

“Amor, sabe o que nasce do cruzamento de japonês com um pavão?”

Fiquei mudo.

“Um espanador de cabo curto.”

Não sei que cara fiz. Mas ela se obrigou a completar:

“É ótima, né?”

“Muito, muito”, eu respondi, perscrutando mais uma vez o seu rosto. ‘E preconceituosa, politicamente incorreta, além de falsa’, pensei comigo, ‘porque japonês de filme de arte tem pau grande’.

Seus olhos emitiam cintilações orientais (nunca havia percebido, antes), sugerindo amêndoas douradas, realçadas pelo negrume dos cílios imensos.

Até eu me assustei com minha própria reverência, o impulso de orar para sua imagem pagã, reafirmando minha condição xiita. Pareço um idiota, eu sei. Mas, se vocês a conhecessem…

 

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Mulher abre a porta do apartamento. De robe azul celeste. Tem 40 anos. É bonita.

“Tá bom, Belmonte, pode entrar. Mas acho estranho você aparecer por aqui. Sabe quando nos vimos pela última vez? Mês e meio atrás.”

“Você sabe, estou enrolado, Luíza. Serviço. Viagens.”

Homem com pasta de executivo na mão vai entrando e se joga numa poltrona. O apartamento é bem arrumado, decoração de móveis modernos. Muita fibra de vidro.

“Mentira, Belmonte. Eu sou realmente uma idiota. Há quase vinte anos que você mente. E eu ainda aceito ouvir suas histórias…”

“Luíza, hoje você pode achar o que você quiser. Se quer me chamar de mentiroso, OK, eu sou. Diga o que lhe vier à cabeça. Xingue. Eu lhe pedi socorro. Preciso falar com alguém que não seja da minha rotina, sobretudo que não seja da minha casa…”

“Aí escolheu sua amante de plantão.”

“Vá em frente, xingue. Solte os cachorros.”

“Seria dar muita importância a você. Você não merece. Quer beber?”

“Nem água.”

Mulher se levanta, serve-se moderadamente de uma dose de uísque.

“Então tá, Belmonte. Você tem alguma coisa a dizer? Hoje não sou amante. Sou ombudsman.”

“Não brinca. Estou cheio. Farto. Não tenho mais nada para dar. Sou vampirizado todos os dias, de todos os lados, em casa, no trabalho, na rua. Você é a única que não me pede nada, nunca me pediu.”

“É que eu só tenho dado esse tempo todo.”

“Para com isso, Luiza. É sério. Eu hoje me dei conta da dimensão do problema: foi logo depois que a mulher me pediu um ‘automóvel japonês’. É possível uma coisa dessas? Um carro japonês?”

“De que marca?”

“Aí é que tá. Esta foi a minha primeira pergunta. Mas ela não especificou.”

“Qualquer um?”

“Para ela, carro japonês é um sedan de mau gosto, meio brilhante, com os faróis sobressaindo… sei lá.”

“Você comprou?”

“Comprei uma revista e mandei que ela escolhesse. Mas o problema não é este…”

“Bem, eu não estava vendo problema nenhum. Sua mulher, burra do jeito que é, é capaz de lhe pedir as coisas mais loucas, e você tem de dar. É o preço de lhe permitir traí-la comigo e Deus sabe com quem mais…”

“Vou fingir que não ouvi. O problema, Luíza, é que ela não quer um carro japonês.”

“Ué, o que ela quer então?”

“Carinho.”

“Carinho?”

“Pois é. Eu não a como, nem toco nela direito; dia desses me conscientizei que nem beijo social ela ganha mais de mim. Você sabe. Então o jeito de receber o afeto que não lhe dou é ganhar um carro japonês. Por exemplo.”

“Belmonte, você está falando uma coisa tão óbvia que chega a me arrepiar. Todo mundo quer carinho. Eu, você sabe, jamais substituiria o carinho que porventura tenha o direito de receber por um carro japonês. Se fosse um cruzeiro pelas ilhas gregas, eu pensaria duas vezes.”

“Você continua destruindo a emoção das pessoas, só para fazer piadinhas?”

“Por que? Você está emocionado?”

“Que os pariu! Nunca pensei nessas coisas antes. Para mim sempre foi uma questão de executar, cumprir, resolver. Nunca percebi que meu filho mais velho come feito um louco porque nem eu nem a mãe lhe damos bola, quer dizer, carinho. Meu presidente, aquele bosta: dia desses eu resolvi tirar um sarro da cara dele e elogiei, até mais não poder, um relatório que ele fez pro Banco Mundial. Uma merda de relatório.”

“E aí?”

“Você precisava ver a reação. Entrou em êxtase. No dia seguinte me devolveu os elogios para o resto da diretoria. Ele só queria carinho, Luíza. Só isso.”

“Belmonte, acho que você está ficando louco. Tem certeza de que não quer uma dosezinha?”

“Nem água.”

Mulher se levanta de novo. Serve-se de um pouco mais de gelo. Retorna ao conjunto de sofás de cor creme. Acetinado.

“Aí o meu psicólogo preferido descobriu que o mundo quer carinho. Filho, mulher, chefe, o garoto que vende balas na rua, o assaltante que rouba para poder comprar uma fazenda, casar, e ganhar carinho, o presidente dos Estados Unidos fazendo…”

“Para por aí, Luíza. Estou em crise, porra! Pedi a você este encontro porque estou em crise. Mas tudo bem. Vou embora.”

Homem ameaça levantar-se.

“Fique por aí, babaca. Vou preparar um uísque pra você.”

“Nem água.”

“Vai beber de qualquer jeito.”

A mulher prepara uma outra dose nada contida, aproxima-se do homem que recebe o copo olhando nos olhos dela. Ela senta-se ao lado e, com seus dedos finíssimos, de unhas bem tratadas, abre uns caminhos pela cabeleira dele, que é vasta e grisalha. Com a outra mão faz uns movimentos circulares sobre seu joelho esquerdo. “Tão sensível, o meu amiguinho…”, ela diz, enquanto aproxima os lábios do seu rosto para beijá-lo, bem de mansinho, superficialmente.

Do livro “Allegro”  – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003

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