Seu Louzeiro chegou, sorridente, amparado pelo filho. Zé Izidro, o cabeleireiro, exultou. Os clientes andavam rareando e aqueles dois representariam um bom faturamento. O filho viera um dia antes para negociar o corte do cabelo do pai. Agora, lá estavam, muito adiantados no horário. Zé Izidro pediu desculpas pela inevitável espera.
“Por mim, não há problemas”, disse o velho, que já passara dos oitenta. “Os mortos não têm compromissos”.
O cliente que cortava o cabelo naquele momento, seu Onofre, ia pra lá dos sessenta e não gostou nada da pequena manifestação de humor negro. “Cada figura que você arruma, não, Zé?”, ele resmungou.
E seu Louzeiro acabaria sendo responsável por um outro momento interessante, naquela tarde, ao folhear uma das revistas de mulheres nuas que Zé Izidro deixava distraidamente ao alcance dos seus fregueses, todos homens.
“Júnior!”, gritou o velhinho para o filho, que examinava um jornal do dia, do outro lado da sala, “esta revista aqui está cheia de mulher com a xoxota de fora!”.
“Vai em frente, pai”, disse Júnior, mais interessado em uma reportagem sobre fundos de investimentos. “Na revista inteira tem mulher assim…”
“Muito cara, esta revista, Júnior?”
“Baratinha. Se o senhor quiser…”
“Não, não. Agradeço.”
‘Velhinho do interior visitando a capital’, concluiu o cabeleireiro que, de vez em quando, dava uma olhada para examinar, divertido, o afã com que seu Louzeiro passava e repassava aquelas páginas coloridas. Até que chegou a vez dele.
Era um velho cabeludo e meticuloso. Gastou um bom tempo para dar as instruções de como queria o corte. Só no capítulo das costeletas (“curtas, muito curtas”) repetiu várias vezes que não conseguia mantê-las do mesmo tamanho, por mais que tentasse apará-las com o barbeador.
Quando iniciou o corte propriamente dito, o barbeiro fez a pergunta clássica:
“O senhor é daqui mesmo, do Estado?”
“Da França.”
“Ah, o senhor é francês? Mas está aqui há muito tempo, não? Não tem sotaque nenhum…”, foi dizendo Zé Izidro, convencido de que havia algo estranho com o velhinho que, com a mão esquerda, segurou-o pelo avental branco e puxou-o para si, fazendo sinal de silêncio com o dedo indicador direito:
“Sabe”, sussurrou, “meu filho não gosta que eu conte a minha vida a estranhos. Medo de sequestro. Mas o senhor, ora, o senhor é confiável. Tem cara de homem honesto. Eu voltei ontem da França. Da minha terra. Estou até meio tonto por causa do fuso horário. Mas, meu caro, vamos falar nós dois aqui, bem baixinho.”
“Tá bom, tá bom”, disse o cabeleireiro, baixando o tom. E emendou:
“Puxa, o senhor deve levar uma vida bastante cansativa…”
“Ah, não me goze… Como é o seu nome mesmo?”
“Zé Izidro.”
“Você tem nome de vinho popular português. José Izidro. Acho que existe um vinho verde com este nome. Mas, meu jovem, um homem na minha idade não tem vida cansativa. Não vai à Europa todo mês, como antigamente.”
“Ah, sim, desculpe, não foi minha intenção…”
“Foi, sim. Você me confundiu como um mentiroso qualquer. Pensou: tá aí o velho, piradão, querendo me impressionar…”
“Não, seu Louzeiro, eu…”
“Esperto, você, não? Seu… seu vinho verde!”
“Não foi minha intenção duvidar do senhor. Eu acredito, sim, que o senhor voltou da França ontem.”
“Da Bourgogne, precisamente. Andei atrás de uns grand cru. Sabe, vinhos especiais… Mas não nasci na Bourgogne, quem me dera, mon Dieu, que uvas! Que técnica! Sou de Paris mesmo…”
“Ah. O senhor entende muito de vinho, não? Eu não posso tomar. Dá dor de cabeça.”
“Me perdoe, meu rapaz, mas só se você tem bebido coisas muito ruins. Nacionais. Ou esses italianos fajutos.”
O corte seguia e Zé Izidro estava muito impressionado. Ficou em dúvida: um mitomaníaco? Teve vontade de perguntar ao Júnior, ainda grudado nos artigos de economia, se ele também estava muito cansado da viagem… Mas aí poderia perder um cliente. Tem gente que não gosta de ironias, ou de conversar sobre intimidades. O velhinho seria um grande mentiroso ou não?
“Você, pelo jeito, nunca esteve na França, não é? Nem na Europa?”
“Quem sou eu, seu Louzeiro…”
Ia dizer que só havia viajado, na vida, para Salvador, por ocasião da lua de mel, além de um fim de semana no Rio. Mas resolveu arriscar uma mentirinha.
“… pois é, seu Louzeiro, quem sou eu para ir até a França. Já em Portugal estive. Acho até que andei tomando aquele vinho verde que tem o meu nome…”
“Oh, oh”, fez o velhinho, com sotaque de Papai Noel. “Bebeu-se a si mesmo. És gostoso? Oh, oh…”
“Levemente ácido”.
“Os levemente ácidos podem ter grande personalidade. Mas os ácidos, mesmo, eu não gosto. Na verdade, você me perdoe, você é um José Izidro, mas eu não vejo muita utilidade num vinho verde. Um bacalhau, por exemplo, é melhor acompanhado por um tinto não muito encorpado.”
“Gostei muito da Mouraria, em Lisboa”, disse o cabeleireiro, lembrando-se de uma reportagem que havia visto na televisão.
“Sim… da velha rua da Palma.”
Seu Louzeiro mais uma vez puxou-o pelo avental, até que sua boca chegasse muito próxima ao ouvido direito do cabeleireiro.
“Frequentei muito a boêmia da Mouraria, com meus amigos franceses. Cheguei a fazer a corte sabe a quem?”
“Nem imagino”, disse o outro, desvencilhando-se com alguma dificuldade. Bem forte, o velhinho.
“Catarina Dumond”.
“Ah, conheci muito, da última vez que ela esteve no Brasil”, retrucou Zé Izidro, que jamais ouvira aquele nome antes.
A partir daí, silêncio. O cabeleireiro achou que havia ido longe demais. Seu Louzeiro ainda assobiou uma canção antiga, disse “pardon”, enquanto pediu, com um gesto, uma outra revista de peladonas. Devorou-a, como a uma guloseima. Depois exclamou “d’acord, d’acord”, quando Zé Izidro perguntou, ao pai e ao filho, se haviam gostado do corte. Júnior fez um gesto de positivo com o indicador, de longe, e pagou em dinheiro, com uma boa gorjeta.
O velhinho teve alguma dificuldade para descer da cadeira: a perna direita ficara dormente. Ele não havia ultrapassado a porta do salão, quando comentou com o filho, em voz mais ou menos alta:
“Você se lembra, Júnior, da Catarina Dumond?”
“Não, pai, não tenho a menor ideia”, respondeu o filho, sempre paciente. “Algum problema com ela?”
“Não confie nas mulheres, Júnior. A Catarina esteve no Brasil e não me disse nada.”
O filho, carinhoso, ainda pediu que ele não se envolvesse tanto com “essas histórias todas que o senhor mesmo inventa”. Seu Louzeiro reagiu, irritado, dizendo que a ele soava como uma ignomínia o pai ser chamado de mentiroso pelo próprio filho. Júnior pediu desculpas.
“Eu não quis dizer ‘inventa’, pai, mas ‘recorda’.”
“Ah, bom”, resmungou o velho, voltando a assobiar “Cuore Ingrato”, uma canção italiana antiga.