“Geralda, sabe, não quero que você me leve a mal, mas acho que deveríamos sair desta recepção. O que nós estamos conversando não bate com os assuntos grupais daqui. Nosso assunto é sério. Mas não vamos sair assim, dois gerentes juntos, vai dar na vista; amanhã já viu, né, a fofocalhada. Vamos fazer assim: você sai antes, depois eu dou um jeito, e a gente se encontra no Bar do Ruço. Tá aqui um cartão dele. Tem estacionamento com manobrista.”
Técnica simples de afastamento de grupo. Umas doses no Bar do Ruço e, depois, cama. Ela tem jeito de quem sobe pelas paredes.
“Tá bom, Nércio, vou com você, o papo está legal, e eu queria saber um pouco mais desse livro do Milan Kundera que você leu. Como é mesmo o título?”
Finjo que não entendo a jogada. Esse Nércio deverá substituir o gerente-geral Arthur, que vai se aposentar. Deve estar confiante, o ego inflado. Mas estou interessada, mesmo, no tal do Milan Kundera.
“Gostou do Bar do Ruço, querida? O Ruço é ruço mesmo, meio sarará. Você achava que era russo com dois esses, não? Todo mundo pensa que ele é lá da antiga União Soviética. Mas é cearense. Olha, se você sentir muito frio, eu peço a ele pra diminuir o ar. O Ruço é supimpa. Vamos beber umas doses. A minha garrafa está aqui, guardadinha. Com meu nome. E o lacre, que eu mesmo pus, ah.”
Estou lhe tocando o braço (tive a impressão de que ela se arrepiou), quase que todo o tempo, e ela não retirou a minha mão, não reclamou.
“Ô Nércio, você manda aqui neste terreiro, né mesmo? Regula o ar-condicionado, guarda a garrafa de uísque. Veja só: bem escurinho, friozinho, para que um agasalhe o outro, e bebam mais um pouco para esquentar… E você já está me tocando, tudo bem, é um toque leve e respeitoso, mas é toque.”
Homem não inova mesmo. É sempre a mesma cantada. Ou piso no freio agora ou em meia hora este cara estará me metendo a mão pela blusa, amassando meus peitos.
“Geralda: tenho duas coisas para lhe contar, uma boa e outra ruim. Eu sabia que você ia querer a ruim primeiro. Ah, antes de falar essas coisas… você quer provolone à milanesa ou iscas de filé? O filé é legal, vem sem cebola, fique tranqüila. Aqueles salgadinhos lá da empresa são um horror, sempre. Acho que o cara lá do Pessoal, o Joca, ganha uma comissão da doceria… Bem, a coisa ruim, então, é a seguinte: eu não li o tal do Milan Kundera. Queria impressionar você. Sabe, venho observando você há muito tempo. Seu jeito de resolver os problemas, suas preocupações sociais. Observação humana, essencialmente humana. Todo mundo diz que mulher gosta desse cara, Milan Kundera. De onde ele é mesmo? Cubano? Ah, a boa, agora: eu não vim aqui com você pra lhe tocar, mesmo que seja com respeito; estou cansado de mulheres fáceis, você é diferente, é a sua alma que me chama a atenção, não repare o que eu digo, sei que é careta, talvez porque eu seja mesmo careta, mas a sua alma é linda.”
Recuo estratégico. Se ela continuasse com aquele papo de “já está me tocando”, esta merda iria acabar com um discurso feminista. As mulheres enlouqueceram mesmo. Antes gostavam de ser levadas no bico. Se excitavam com isso. “Me engana que eu gosto.”
“Pensando bem, Nércio, eu não sei o que a gente veio fazer aqui. Sinceramente. Eu estava interessada no Milan Kundera. E você, queria o quê?”
Corte brusco na enrolação. Cara-de-pau. E apelativo. Daqui a pouco vai dizer de cara lavada que a bunda da minha alma é o maior tesão.
“Geralda: você fez o curso de ‘Gerência Participativa’? Viu o que o conferencista carioca, o cara que fez ginástica no palco, falou sobre o ‘vício da descomunicação’? Lembra, ele explicou, ‘vou usar uma palavra que não existe, descomunicação – é que nós estamos viciados em dizer as coisas de uma maneira enviesada, evasiva, às vezes negando o que gostaríamos realmente de dizer; isto é descomunicação.’ Pois bem, Geralda: não vamos deixar que aconteça conosco – minha querida! Se estamos aqui é porque gostamos um do outro. Com limites, é claro. A nossa amizade está além do puro coleguismo, e aquém de uma situação, digamos, de alcova.”
É preciso, a todo custo, trazer a conversa para um patamar seguro. Ela poderia abrir um pouco a guarda, o uísque fazer efeito, pô.
“Olha, em matéria de descomunicação, o mestre é você, Nércio, e não aquele carioca de peruca. Desde que chegamos aqui, você só descomunicou.”
Encurralar o puto. Vai ter de dizer que só quer me comer. Me enganou, pensei mesmo que tinha lido o Milan Kundera. Gervásia chorou demais quando leu um romance do cara. Se encontrou numa personagem.
“Não sei mais o que dizer… Sabe, Geralda, na hora em que chamei você para cá, uma luz se abriu na minha mente. ‘Enfim, meu Deus, uma conversa inteligente nesta empresa’, eu pensei…”
“Olha, Nércio, chega! Você não está aqui a fim da minha inteligência. E muito menos da minha alma. Você quer é me comer. E eu não estou a fim de dar. Então, vamos parar de descomunicar, tá entendendo? Eu vim porque senti a possibilidade (veja bem: possibilidade) de você ser um papo legal, literário, de a gente trocar realmente umas idéias; idéias de fato, sabe, do mundo virtual, e não se enfiar um no outro como todo mundo faz por aí o tempo todo…”
“Você queria que eu lhe pedisse em casamento, princesa?”
“Princesa o caralho. Com a merda que você ganha, iria casar como? Com quem? E quer saber? Duvido que você vá substituir o gerente-geral Arthur. O Fernandão está muito mais preparado do que você. Emocionalmente, você é uma criança, ou melhor, um deficiente. Me arrastar até aqui pra me falar um monte de merda… Também a culpa é minha, eu vim…”
“Está falando alto demais, Geralda. Estão olhando. Vamos embora, vou pagar a conta.”
“Não vai pagar nada. Vamos dividir.”
Do livro “O Homem dentro de um Cão”, Editora Terceiro Nome, 2007
Deixe um comentário