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Posts Tagged ‘corno’

A Harley-Davidson imponente, brilhante, impecável, parou na frente do bar que não ficava exatamente na praia, mas numa rua transversal à Avenida Beira Mar. De lá, no entanto, ouvia-se o marulho e sentia-se o odor forte de sargaços, indicando tempo de chuva.

Dois homens, de roupa esporte, desceram da imensa motocicleta. Tiraram os capacetes: o mais alto era bem mais velho, meio gordinho, tinha uma expressão jovial no rosto; o mais baixo, com metade da idade, magro e pálido, parecia sombrio e deprimido.

Entraram no bar bem arrumado, pequeno e íntimo, com o mais velho fazendo festa para o dono e alguns fregueses que o cumprimentaram com sincera alegria.

“Jorjão”, disse o mais velho ao proprietário do bar, “não é que eu tenha virado a mão, não, mas hoje estou acompanhado de homem…”

“Um dia iria acontecer com você, também”, disse Jorjão, revelando sua definitiva feminilidade. “Um belo rapaz, seu acompanhante”, ele completou.

“Jorjão, hoje vamos ficar bêbados, e se não der para dirigir de volta você guarda a menina lá no fundo, tá certo?”

O outro fez que sim com a cabeça e foi buscar o litro de uísque que o mais velho mantinha no bar, de reserva.

“Eu ia até fazer uma brincadeira, mas seu amigo não está de cara boa…”, brincou Jorjão, servindo gelo e copos.

O homem mais velho passou a mão na cabeça do rapaz, carinhoso.

“Cai fora, Jorjão, a gente aqui vai ter um papo…”

O outro saiu, discreto, e o rapaz falou pela primeira vez:

“Jamais imaginei que o maior publicitário da cidade pudesse convidar um redator iniciante pra beber com ele.”

“Vai à merda, cara. Não estamos aqui por causa da profissão. Quero tirar essa mulher da sua cabeça. Aliás, quero, não. Vou tirar. O que está acontecendo com você é a história da humanidade.”

“Todo mundo é corno, na humanidade?”

O outro pensou um pouco, aproveitou para beber a primeira dose.

“É. Potencialmente é. Eu já fui, potencial e realmente.”

“Não posso falar mal de Virgínia, aqui.”

“Pode falar, sim. Diga, diga que ela é uma filha da puta e que lhe pôs uns chifres, que não tem sentimentos nem coração.”

“Para!”, disse o rapaz, num tom mais alto. “Você agora quer me gozar”.

“Olha aqui, moleque. Sempre gostei de você. Pelo lado da profissão, porque você é talentoso e competente, mas sobretudo pelo lado humano. Você é um cara solidário, e isso é raro nesse formigueiro de egos em que estamos metidos. Você sofre porque os outros passam fome, por exemplo. Eu já acho que ninguém mais passa fome, e que a falta de respeito é mais dramática do que a falta de comida.”

“Sei o que você pensa.”

“Pois bem. Às vezes, você é o cara ideal: você é honesto, discreto, politicamente correto, e não serve para uma mulher como a Virgínia, que, apesar da imensa beleza, é arrogante, preconceituosa e mau-caráter.”

O rapaz olhou meio desconfiado para o mais velho, e pela primeira vez provou o uísque, sem alterar o ar circunspecto.

“Olha aqui, você está exagerando com relação à Virgínia.”

“O que eu quero lhe dizer, moleque, é o seguinte: ela não tem qualidade humana para reconhecer em você um parceiro viável. Falo do fundo do coração. Você é muito melhor do que ela.”

“Mas, cara, eu estou apaixonado. É ridículo, isso, mas eu não posso deixar de pensar na Virgínia, todo o tempo, de manhã à noite, e virei um babaca, até música de quinta me faz chorar, e eu estou distraído no trabalho.”

“Tudo falso, tudo mentira. Seu rendimento continua ótimo, você pensa que ela o obsidia, mas foi uma forma que você encontrou para se autopunir.”

“É verdade o que estou lhe dizendo, porra. Ela me perturba!”

“Porra é você, seu puto! E você pensa que eu não já passei por isso? Hoje eu não troco minha motocicleta por mulher nenhuma. Sou separado há dez anos, você sabe, e nada me dá mais tesão do que andar naquilo dominando o acelerador.”

“Você virou uma máquina, como a maioria.”

“Virei o caralho! Um dia talvez aconteça de eu voltar a me apaixonar. Por enquanto, nem ameaça. Sabe qual foi um problema? Você e Virgínia trabalharem juntos. E ela, na função de contato, levando cantada de todo tipo de homem. Isso endoideceu você.”

“Ela é que endoidou. Me traiu.”

“E por que você não a trai? Arrume alguém melhor do que ela. Está cheio de mulher por aí.”

O mais velho olhou demoradamente para o companheiro. Percebeu que já desfranzira a testa: um bom sinal. Na segunda dose de uísque, dera um mísero sorriso. Mas era o primeiro, em semanas. Lamentou, para si mesmo, que o mundo só funcionasse debaixo de mentiras. Lembrou do tempo em que tinha aquela idade, e de como ficou arrasado no dia em que Carmem, a ruiva, lhe dissera que estava tudo acabado. Pálido, perguntou o porquê e ela não teve dúvidas: “O meu amor por você só me permite trocar cartas de amigos”. Foi a morte: deixou a casa dos pais e se meteu numa aventura radical dentro da Amazônia. Pegou malária, escapou de um ataque de índios e voltou vinte quilos mais magro. Porém curado. Não queria que seu jovem amigo, ali, radicalizasse daquele jeito. Nem que se enterrasse numa depressão da moda, talvez mais perigosa do que a floresta.

Uma hora depois, ofereceu carona ao rapaz, que já denunciava o efeito do uísque, para levá-lo em casa. Ele não quis. “Fico aqui no bar, depois pego um táxi.”

Despediu-se de Jorjão (“deixa que eu tomo conta do boneco”, efeminou-se de vez o dono do bar), dos poucos fregueses que ainda restavam por ali, encheu os pulmões com o cheiro de mar e ligou a poderosa Harley-Davidson. Mas antes de acelerar pela avenida, a mais de cento e trinta por hora, discou um número no celular:

“Porra, Virgínia. Acabei de evitar que seu ex-namorado se suicidasse. Da próxima vez, seja mais discreta ao acabar com seus relacionamentos.”

“Papai, não acredito que você foi pajear o…”

“Tem nada a ver, filha. É um cara que trabalha com a gente, está fudido, me contaram que até pensou em se matar.”

“Quem disse?”

“Não interessa. Colegas. E sabe de uma coisa? Estou pensando em despedi-lo amanhã. Eu mesmo lhe arranjo emprego numa outra agência.”

“Por que você foi conversar com o cara, pai?”

“Quer saber mesmo? Porque ninguém fez isso comigo quando eu precisei. Mas foi a última vez. Estou aqui exausto de tanto mentir.”

Depois, acelerou a Harley-Davidson no limite entre o prazer e o risco de vida. Quando sentia raiva de si mesmo, tinha impulsos de acelerar mais e mais.

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