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“Geralda, sabe, não quero que você me leve a mal, mas acho que deveríamos sair desta recepção. O que nós estamos conversando não bate com os assuntos grupais daqui. Nosso assunto é sério. Mas não vamos sair assim, dois gerentes juntos, vai dar na vista; amanhã já viu, né, a fofocalhada. Vamos fazer assim: você sai antes, depois eu dou um jeito, e a gente se encontra no Bar do Ruço. Tá aqui um cartão dele. Tem estacionamento com manobrista.”
Técnica simples de afastamento de grupo. Umas doses no Bar do Ruço e, depois, cama. Ela tem jeito de quem sobe pelas paredes.
“Tá bom, Nércio, vou com você, o papo está legal, e eu queria saber um pouco mais desse livro do Milan Kundera que você leu. Como é mesmo o título?”
Finjo que não entendo a jogada. Esse Nércio deverá substituir o gerente-geral Arthur, que vai se aposentar. Deve estar confiante, o ego inflado. Mas estou interessada, mesmo, no tal do Milan Kundera.
“Gostou do Bar do Ruço, querida? O Ruço é ruço mesmo, meio sarará. Você achava que era russo com dois esses, não? Todo mundo pensa que ele é lá da antiga União Soviética. Mas é cearense. Olha, se você sentir muito frio, eu peço a ele pra diminuir o ar. O Ruço é supimpa. Vamos beber umas doses. A minha garrafa está aqui, guardadinha. Com meu nome. E o lacre, que eu mesmo pus, ah.”
Estou lhe tocando o braço (tive a impressão de que ela se arrepiou), quase que todo o tempo, e ela não retirou a minha mão, não reclamou.
“Ô Nércio, você manda aqui neste terreiro, né mesmo? Regula o ar-condicionado, guarda a garrafa de uísque. Veja só: bem escurinho, friozinho, para que um agasalhe o outro, e bebam mais um pouco para esquentar… E você já está me tocando, tudo bem, é um toque leve e respeitoso, mas é toque.”
Homem não inova mesmo. É sempre a mesma cantada. Ou piso no freio agora ou em meia hora este cara estará me metendo a mão pela blusa, amassando meus peitos.
“Geralda: tenho duas coisas para lhe contar, uma boa e outra ruim. Eu sabia que você ia querer a ruim primeiro. Ah, antes de falar essas coisas… você quer provolone à milanesa ou iscas de filé? O filé é legal, vem sem cebola, fique tranqüila. Aqueles salgadinhos lá da empresa são um horror, sempre. Acho que o cara lá do Pessoal, o Joca, ganha uma comissão da doceria… Bem, a coisa ruim, então, é a seguinte: eu não li o tal do Milan Kundera. Queria impressionar você. Sabe, venho observando você há muito tempo. Seu jeito de resolver os problemas, suas preocupações sociais. Observação humana, essencialmente humana. Todo mundo diz que mulher gosta desse cara, Milan Kundera. De onde ele é mesmo? Cubano? Ah, a boa, agora: eu não vim aqui com você pra lhe tocar, mesmo que seja com respeito; estou cansado de mulheres fáceis, você é diferente, é a sua alma que me chama a atenção, não repare o que eu digo, sei que é careta, talvez porque eu seja mesmo careta, mas a sua alma é linda.”
Recuo estratégico. Se ela continuasse com aquele papo de “já está me tocando”, esta merda iria acabar com um discurso feminista. As mulheres enlouqueceram mesmo. Antes gostavam de ser levadas no bico. Se excitavam com isso. “Me engana que eu gosto.”
“Pensando bem, Nércio, eu não sei o que a gente veio fazer aqui. Sinceramente. Eu estava interessada no Milan Kundera. E você, queria o quê?”
Corte brusco na enrolação. Cara-de-pau. E apelativo. Daqui a pouco vai dizer de cara lavada que a bunda da minha alma é o maior tesão.
“Geralda: você fez o curso de ‘Gerência Participativa’? Viu o que o conferencista carioca, o cara que fez ginástica no palco, falou sobre o ‘vício da descomunicação’? Lembra, ele explicou, ‘vou usar uma palavra que não existe, descomunicação – é que nós estamos viciados em dizer as coisas de uma maneira enviesada, evasiva, às vezes negando o que gostaríamos realmente de dizer; isto é descomunicação.’ Pois bem, Geralda: não vamos deixar que aconteça conosco – minha querida! Se estamos aqui é porque gostamos um do outro. Com limites, é claro. A nossa amizade está além do puro coleguismo, e aquém de uma situação, digamos, de alcova.”
É preciso, a todo custo, trazer a conversa para um patamar seguro. Ela poderia abrir um pouco a guarda, o uísque fazer efeito, pô.
“Olha, em matéria de descomunicação, o mestre é você, Nércio, e não aquele carioca de peruca. Desde que chegamos aqui, você só descomunicou.”
Encurralar o puto. Vai ter de dizer que só quer me comer. Me enganou, pensei mesmo que tinha lido o Milan Kundera. Gervásia chorou demais quando leu um romance do cara. Se encontrou numa personagem.
“Não sei mais o que dizer… Sabe, Geralda, na hora em que chamei você para cá, uma luz se abriu na minha mente. ‘Enfim, meu Deus, uma conversa inteligente nesta empresa’, eu pensei…”
“Olha, Nércio, chega! Você não está aqui a fim da minha inteligência. E muito menos da minha alma. Você quer é me comer. E eu não estou a fim de dar. Então, vamos parar de descomunicar, tá entendendo? Eu vim porque senti a possibilidade (veja bem: possibilidade) de você ser um papo legal, literário, de a gente trocar realmente umas idéias; idéias de fato, sabe, do mundo virtual, e não se enfiar um no outro como todo mundo faz por aí o tempo todo…”
“Você queria que eu lhe pedisse em casamento, princesa?”
“Princesa o caralho. Com a merda que você ganha, iria casar como? Com quem? E quer saber? Duvido que você vá substituir o gerente-geral Arthur. O Fernandão está muito mais preparado do que você. Emocionalmente, você é uma criança, ou melhor, um deficiente. Me arrastar até aqui pra me falar um monte de merda… Também a culpa é minha, eu vim…”
“Está falando alto demais, Geralda. Estão olhando. Vamos embora, vou pagar a conta.”
“Não vai pagar nada. Vamos dividir.”

Do livro “O Homem dentro de um Cão”, Editora Terceiro Nome, 2007

Ela sempre chegava de mansinho, sem fazer qualquer barulho, andando devagar e usando tênis, e Jeremias sabia exatamente o momento em que, olhando para trás, daria com a figura brancosa de Mrs. Marshall, a americana, a olhar bondosamente para ele. Não era exatamente pressentimento, o que ele sentia, mas um perfume intenso, redondo, quase físico, que sempre acompanhava a velha senhora.
“Muito bem, senhor Jeremias”, disse ela, com um sotaque de doer no ouvido. “O senhor conseguiu nos livrar de todas as ervas daninhas… Agora, vamos ver se conseguiremos desenvolver os girassóis…”
Sorria, não mostrava os dentes, e Jeremias lhe retribuía com outro sorriso, sem se preocupar com a ausência dos caninos. Era pobre, mas vaidoso, e com qualquer outra pessoa ele não abriria a boca.
“Senhor Jeremias”, ela continuava, “ainda não sei o que o senhor é…”
“Como assim, dona?”
“As pessoas são como as flores, senhor Jeremias. Eu ainda estou em dúvida se o senhor é um cravo branco ou um crisântemo, também branco.”
O jardineiro começou a rir, mais do que gostaria, na verdade, porque achava que o riso, em especial o seu, poderia ser interpretado como desrespeito. Sobretudo diante de uma dama de posses, que tinha casa com jardim, e era, ainda por cima, estrangeira – e, mais do que isso, americana! Os americanos haviam se transformado na esperança de todos para derrotar a Alemanha nazista, inimiga comum.
“Mas está rindo de que, senhor Jeremias?”, ela perguntou, simpática.
“Não posso ser cravo, dona, porque sou preto.”
“Ora, senhor Jeremias… Eu sou branca, loura, mas me considero uma dália vermelha, que é a flor da paixão humana! Estou falando do seu temperamento, não da sua cor!”
“Desculpe, dona…”
“Nada, ora. Mas essa sua reação me ajudou a decidir quem o senhor é: um crisântemo!”
“Obrigado, dona…”
“Pois sim. Quando quiser almoçar, dê um toque lá atrás, na porta.”
Mrs. Marshall fechava a casa toda. ‘Certamente porque é sozinha e deve ter medo’, pensava o jardineiro, agora mais preocupado em descobrir que flor deveria ser sua mulher, Cleonides. Tão doce, tão pura: um lírio? Uma camélia? Já sua filha mais velha, Nezinha, mais doce ainda do que a mãe, ele não tinha dúvidas: era uma margarida. E o filho, Pepeu, vaidoso como os homens da família, só poderia mesmo ser um narciso. Jeremias já ouvira falar que os narcisos se orgulham de sua própria beleza. Pepeu era, realmente, um belo rapaz, com uma linda voz rouca que exibia nas rodas de samba.
No dia seguinte, no ônibus, indo para o trabalho no jardim, ele ainda tentava descobrir quem era o quê. Entrou na rua de Mrs. Marshall pensando nisso. Mas quase não reconheceu a casa branca, tão branca como as roupas da sua dona. Portas e janelas abertas, a casa expunha sua intimidade. De longe era possível ver retratos na parede, móveis pesados. E jarros com outras plantas, algumas flores. Os homens de terno e chapéu que invadiam a casa e o jardim olhavam com respeito para as flores. Trêmulo, Jeremias chegou até o portão. O engravatado mais velho, que saíra da casa naquele momento, apressou o passo até ele.
“Quem é você?”
“Jeremias. O jardineiro. Aconteceu alguma coisa com a dona?”
“Eu faço as perguntas”, disse o homem, cujo bigodinho havia sido pintado com uma tinta amarronzada. ‘Não sei que flor ele poderia ser’, pensou Jeremias, num reflexo. “Então, jardineiro”, completou o homem, ríspido, “você vai nos acompanhar ao quartel.”
Que dia! Até que os policiais (soube depois quem eram eles) o trataram bem, serviram-lhe um café com leite, e só lamentaram que ele fosse tão distraído.
“Mas, meu nego”, insistiam os dois mais jovens e mais nervosos, “você nunca viu ninguém chegando, ninguém saindo daquela casa?”
“Não, senhor, nunca!”
Mostraram-lhe várias fotos de homens e mulheres. Não, ele não vira – de verdade – nenhum deles. O máximo de que se lembrava era de um barulhinho, parecido com campainha de telefone, que ele e Mrs. Marshall ouviam, às vezes, quando ambos se ocupavam de assuntos do jardim; aí, ela pedia licença e entrava na casa.
“Era o rádio”, disse um dos rapazes.
“Você tem alguma ideia, jardineiro, da profissão da sua patroa?”
“Não, senhor.”
“Espiã nazista.”
“Ela me dizia que era americana. Não é?”
“Passava-se por americana. É alemã.”
Jeremias não acreditou. Uma nazista, capaz de fazer tudo aquilo que o povo dizia, não poderia gostar tanto de flores. Já haviam prendido outras pessoas inocentes, ouvira dizer. Certamente os homens iriam perceber o engano e mais dia, menos dia, mandariam a americana de volta para a casa branca. Jeremias decidiu que cuidaria do jardim, na ausência dela. Dálias vermelhas são flores bastante afirmativas, mas não fazem mal a ninguém.

A vista, a partir do quadrado da janela, prometia beleza e paz, e eu conseguia ver tão pouco, dada a posição em que me encontrava na cama daquele apartamento: um córrego, algumas árvores, borboletas às centenas e uns e outros pássaros, extremamente coloridos, que jamais vira antes. Daquela posição conseguira observar, também, outros prédios, de pelo menos dez andares cada. Aquele era um complexo hospitalar imponente.
A enfermeira Cleusa, que me acompanhou a partir do primeiro dia e só me largava quando eu adormecia, sorriu para mim, com seu ar compassivo de sempre:
“Germana, você precisa se preparar. Algumas pessoas esperam por você nos jardins do lado de fora.”
“Eu já sei. Já estou preparada. Meu pai, minha mãe, meus tios.”
“E Nirlando…”
“Ele? Ele também? Não poderia ficar pra depois?”
“Ele tem feito muitos sacrifícios aqui, apenas para ajudar você. Tem sido um guardião. E ele é o que mais insiste em vê-la.”
“Só não sei como reagiria…”
“Não importa. Aqui é mais difícil a gente se esconder de si mesmo. Reaja como você é.”
Dispensei a cadeira de rodas, disse que faria um esforço, e Cleusa gostou de ouvir isso. Ela me incentivava a levantar da cama e ir até o banheiro, dava umas pequenas voltas comigo dentro do apartamento.
“O problema que afetou você, Germana”, ela me dizia, “deixa marcas bastante profundas no corpo, mesmo depois de algum tempo da manifestação. Você ainda sentirá algumas dores no abdômen. Mas nada que não possa ser vencido por sua força de vontade.”
Apesar de haver perdido a noção de tempo, imagino que tenha passado um mês internada, a partir do momento em que abri os olhos e vi a luz mortiça do cômodo: foi minha primeira imagem após a cirurgia. Depois, olhei de lado, ainda com muitas dores, e vi o sorriso claro da enfermeira.
Agora estava ali, no corredor, achando que não suportaria andar mais. Sentia como que punhais a me atravessarem a barriga. Mas nem gemi. Acreditei que minha vontade resolveria tudo. Quantas vezes, no passado, não resolvi problemas unicamente pela minha insistência em enfrentá-los.
Cheguei arfante à porta do terraço. Lá fora, vislumbrei, havia uma paisagem de sonho, com árvores de um verde indefinível, em vários tons, e o sobrevôo de uma infinidade de pássaros, diversos nas cores e nos cantos. Mas eu ainda estava extremamente concentrada na minha própria dor.
“Vamos, com mais cuidado…”, disse Cleusa.
Meio encurvada, procurei uma cadeira e fui sentando, já sem fôlego. Foi aí que levantei os olhos e vi, à minha frente, a figura enorme de Nirlando.
Não sei o que doía mais, se a dor física ou a dor da culpa ao enxergar novamente o meu ex-noivo, de alianças, como se usava antigamente, e que eu havia traído e destruído no passado, com um comportamento irresponsável.
Mas ele, que logo se levantou, lembrando-me do quanto me parecia imenso, com quase dois metros de altura e mais de cem quilos, era uma criança, ou um adolescente, na expressão do rosto. Como estaria me vendo, velha e carcomida? E ainda fazendo caretas de dor?
“Germana”, ele foi dizendo, “trouxe também dona Olair e seu Enéas…”
De que estava falando? Ora, ele permanecia ali, sozinho, todo desajeitado como sempre. Onde estariam minha mãe e meu pai?
Olhei para os lados; olhei além dos ombros de Nirlando; cruzei meu olhar com o de Cleusa e pedi socorro.
“Olhe, Germana, fique calma”, disse a enfermeira. É a primeira vez que você vê este lugar. A gente vai se acostumando aos poucos. A cada dia você vai enxergar uma realidade a mais.”
“Mas por que não vejo meus pais, Cleusa? Afinal, são os meus pais!”
“É difícil lhe explicar. São ajustes, evoluções.”
Nirlando, bem do jeito dele, parecia decepcionado. Mais uma vez ele não conseguia ver-me feliz.
“Germana, seu Enéas, dona Olair, eles… voltarão aqui, amanhã, outro dia, você vai precisar descansar mais um pouco, sabe?, é normal que não consiga vê-los..”
Eu me lembrei, subitamente, de como Nirlando se tornava prolixo na hora de justificar alguma coisa. Não pude evitar uma certa irritação, mas logo entendi que esse sentimento, assim como as pontadas internas, não passavam de memórias recorrentes. Olhei mais uma vez o grande vazio de afetos à minha frente. Mas, desta vez, apreciei melhor a paisagem magnífica. Um pássaro grande, de papo vermelho e penas como numa aquarela, pousou no galho mais próximo da árvore à minha frente. Ali ficou, como a me observar. Onde eu poderia tê-lo visto, uma vez? Na viagem que fiz à Amazônia? Num filme? Por que tive a impressão de que aquela ave tão exuberante estava sempre do meu lado, a me acompanhar, como um guarda da Natureza? Essa ideia me fez sorrir, e acho que pela primeira vez, desde a minha chegada, mostrei o meu rosto sem dor.
Nirlando tornou-se iluminado com essa minha reação e eu ganhei a perfeita consciência de como precisava corresponder, de alguma forma, ao amor daquele homem tão bondoso, tão especial.
“Perdoe-me, Nirlando”, e, sinceramente, eu falava sentindo um grande carinho por ele, “mas eu ainda estou meio confusa; não é todo dia que se morre.”
Ele ouviu, em primeiro lugar, com um ar preocupado; depois sorriu, com todos os seus dentes. E eu me conscientizei de que não amá-lo por toda uma vida fora uma grande perda; a maior, talvez.

Vocês podem imaginar: um ambiente respeitoso, música clássica a todo volume, e um anfiteatro bastante espaçoso, tendo, ao centro, o cadáver no caixão.
É assim, no Crematório do Sul. Trouxeram o corpo da indigitada, de tão longe, do interior, somente para dizer, quem sabe, que a cremaram na capital. Questão de status.
Foram-se chegando. Com seus ternos apertados, de domingo. Eu me informei: era a primeira vez que alguém da nossa pequena cidade seria cremado na capital e com toda aquela pompa. (Na verdade, a pompa resumia-se à seleção dos clássicos populares que um DJ distraído e meio bêbado escolhera para a ocasião.)
De qualquer forma, pareceu-me natural toda aquela procura por lugares no anfiteatro. E aí pensei uma coisa inviável: a falecida deveria estar vibrando. Onde quer que se encontrasse. Ela gostava disso.
Explico-me: sou um dos amigos mais próximos da moça que morreu, a Cleonides, médica psiquiatra que não exercia a profissão; preferia posicionar-se, socialmente, no que chamava elite, e gostaria de ditar a moda e os costumes. Tudo bem: fui um caso dela. Um dos. Eu a desfrutava na sua própria casa, às segundas, quartas e sextas, dentro do seu quarto, tendo toda sua família, pai, mãe e irmãos, ativos na sala, vendo jogos de futebol. Eram fanáticos. E se esqueciam do mundo e de nós.
Mas sempre soube que tinha outros rivais. O De Sotto, por exemplo. Ele não só a papava às terças, quintas e sábados, como, domingo sim, domingo não, a levava ao motel da estrada, o único no nosso município, o Red Rose.
Essa vida sexual tão ativa, porém tão discreta, jamais inibiu Cleonides de ditar normas e estabelecer regras dentro da nossa pequena cidade. E não posso dizer que ela não fosse extremamente generosa: obrigava-nos, ao De Sotto e a mim, pequenos empresários que somos, a liderar um movimento empresarial em prol da criança desamparada, e se não fosse por ela eu jamais teria dado condições de vida a cerca de vinte meninos e meninas que o nosso movimento acabara catando nas ruas da cidade.
Olho para o anfiteatro e vejo que todos os presentes de alguma forma foram influenciados por ela a socorrer os aflitos. Por que ela fazia isso? Não sei. Mas, se não fosse Cleonides, jamais teríamos alcançado o primeiro lugar de cidade mais pacífica do Estado, com apenas três assaltos, em média, no ano passado. E nenhum crime de morte.
Quando a estatística foi divulgada, pela imprensa nacional, é que nos demos conta dos acertos da nossa benfeitora: ela insistia que a criminalidade era uma questão de educação, que os bandidos cultos não chegariam a zero vírgula um por cento da população criminal. Tinha razão. Ser caridoso, para mim, era muito fácil: uma olhada rápida no faturamento do mês e uma assinatura num cheque de quantia irrisória, comparativamente falando.
Lá estava, no anfiteatro, o major Diogo, o padre Alípio, e o pastor Jeremias. O major é um líder espírita importante no Estado e que, por coincidência, é nativo da nossa cidade; o padre Alípio é praticamente uma criação da nossa amiga morta; ela o fez através de um programa de rádio que assumira, “O consolo aos que têm fome”, onde apresentava o consolador, ou seja, o padre.
A relação com o pastor Jeremias era um pouco mais complexa: ele era (era não, é) jovem e bonito, mas nossa amiga já não tinha agenda. E assim, na impossibilidade de envolver-se de uma forma mais direta, Cleonides o acompanhava aos bairros periféricos, onde o rapaz deitava sua falação evangélica e arrebanhava fiéis. A quem lhe perguntava o porquê de tanto ecumenismo, Cleonides dizia:
“Só existe um único Bem. O resto é performance.”
Ela tinha razão, sabem? Hoje a vejo no que seria o centro do palco, imóvel e rígida, mas percebo em cada mente, em cada rosto da nossa cidade, que Cleonides não pára de falar nos ouvidos deles todos, dizendo façam isso e aquilo, ajudem a fulano e sicrano, não sejam egoístas nem omissos, sejam como eu, que amo a vida, trabalho, rio, bebo, trepo com quem quero e morro quando tiver de morrer.
Com toda sinceridade, a memória da sua voz rouca continua a me incomodar; a sua insistência, a me oprimir. Ela me reapresenta às minhas próprias culpas, que não são poucas, e cutuca o meu egoísmo, imenso e devasso.
Não vejo a hora dessa cerimônia acabar. Mas acho, também, que não vou me livrar tão cedo da falecida.

Requinte

Chegamos ao porto num sábado de manhã. Eu e o fotógrafo. De roupas simples. Não posso negar, nasci numa família tradicional, não tenho culpa disso, mas sou jornalista. Ou melhor: sou um duro. Minha mãe, meu pai, meus tios esbanjam dinheiro por aí. Eu sou e estou fudido. Nem herança tenho. Meu pai era a ovelha negra da família. Ovelhas negras não deixam herança, torram tudo.
Meu chefe me veio com uma história de que eu tinha de escrever uma grande reportagem sobre a máfia do porto. Estou cansado de ouvir falar que no porto há uma máfia. Em geral, protagonizada pelos sindicatos de classe. É a direita tentando desestabilizar a oposição. Chamam os estivadores de preguiçosos. Pelegos. Eu acho que a direita não tem razão em princípio. Eu quero que a direita se foda.
Mas, quem vai dar atenção às convicções pessoais de um bosta de repórter e um bosta de fotógrafo, perdidos no meio de um porto? Por outro lado, no meio dos estivadores há muita gente que faz jogo duplo. Ninguém me disse, eu sei. O mundo é assim.
O fotógrafo é nordestino, e isso era uma boa, eu lhe falei: “A maioria dos caras aqui são da sua região, Jumenta (era o apelido dele: Jumenta, não sei por que no feminino). Conversa com eles, fala do litoral, das mulheres que você comeu na Bahia.”
“Não comi ninguém na Bahia”, disse Jumenta.
“Então foi porque não quis”, eu concluí, rindo.
Puta que o pariu. A máfia do porto. De que ponto de vista? Dos empresários? Dos donos dos navios? Ou dos donos das cargas? Ou ainda da elite dos estivadores, organizados nos sindicatos? Claro que seria do ponto de vista do poder. Dos estivadores, jamais. Não quero dizer que eles são santos, não. Mas, máfia por máfia, a dos empresários é mais eficiente. Tem mais recursos.
“Jumenta, vou te confessar…”, disse ao fotógrafo, “não sei por onde começar.”
“Olha, vou te contar uma coisa”, retrucou Jumenta, “a maioria dos repórteres não sabe por onde começar. Você é exceção porque confessa. Os caras, a maior parte deles, se acham uns gostosões. E escrevem o que pensam que o patrão vai gostar. Ô gente filha da puta. Repórter e patrão!”
“Nem todo patrão é filha da puta, Jumenta”, eu disse com pouca convicção. “No meu jornal o que eu escrever, sai.”
“Só se for no teu. Mas, afinal, o teu é o nosso.”
E assim fomos. Chegamos ao porto, aquela balbúrdia. Homem sem camisa, burocratas, putas, policiais militares, policiais civis de bigodinho. Uma zona.
“Olha, cara, vou te falar”, disse Jumenta. “Aqui você vai ter de procurar o ponto de referência.”
“Como?”
“Um lugar onde todo mundo envolvido na sacanagem apareça. Só conheço um.”
“Eu também. A zona.”
“Pois é: a zona.”
Fomos para a zona. Deixei claro, de cara, que não estava a fim de comer ninguém. Mulheres horrendas. Putas fantasiadas de putas. Algumas pintavam boquinhas de batom sobre os próprios lábios, como num pastiche. Levaram-me a Mãe Ermínia, a cafetina-chefe.
“Que é que você quer, garoto?”
“Olha, Mãe Ermínia, com todo respeito, não sou um garoto; tenho vinte e quatro anos.”
“Pra mim tem cheiro de leite.”
“Eh, tudo é relativo… Vou confessar pra senhora: preciso saber como funciona o porto. É uma reportagem. Aí me disseram que todo mundo gira em torno da senhora.”
“Regra número um: se você falar de mim ou das minhas meninas, é um homem morto.”
“Já lhe disse. Não é uma reportagem sobre a zona, ou o seu bordel, é sobre o porto. É mais, digamos, genérica…”
“Tá bom. O que posso lhe oferecer é uma vaga aqui, no pedaço. Quer ser cafetão?”
“Não tenho jeito.”
“Tem mesmo não. Então, pra começar, vou te convidar para o nosso jantar. Às nove da noite em ponto.”
“Cedo.”
“Quem disse que puta séria dorme tarde? Em ponto.”
“Tá bom.”
Nove da noite, eu e Jumenta, numa mesa comprida e larga, no primeiro andar do puteiro, com as mulheres mais inacessíveis do mundo à nossa frente ou ao nosso lado. Inacessíveis porque, como putas, poderíamos tê-las a qualquer momento. Mas uma coisa é usar, fuder, penetrar, e outra é ter. Ganhar o afeto. Ser o dono emocional. Bobagem, né? Mas aprendi ali. A minha namorada, por exemplo, a Chandele, a gente se comia o tempo todo mas nenhum dos dois possuía o outro. Era só um jogo. De perdedores. Puta ensina muita coisa pra gente.
O cardápio, não podia deixar de ser, era peixe. E a bebida, cerveja.
“Tem vinho?”, eu perguntei, distraidamente, e Mãe Ermínia sacou.
“O boneco é fino, pois não?”, ela sarrou da minha cara.
“Sou nada, Mãe. Como diz Lady Sheyla, eu sou fino pra caralho”, respondi.
“Quem é Lady Sheyla?”
“É uma colega. É ela que gosta de dizer, quando lhe enchem o saco: ‘vamos parar com isso porque eu sou fina pra caralho e, quando eu sou fina, é foda.’”
“Vou lhe mandar servir um vinho”, anuiu Mãe Ermínia. “Tinto. Gente fina prefere peixe com vinho tinto e não branco, como todo mundo pensa. Sabe, eu gosto de você.”
“E eu da senhora.”
Vou confessar: jamais comi um peixe com um molho daqueles, tão requintado, que nenhum restaurante francês, nem em Paris e muito menos no Brasil, jamais me serviu. O vinho era um tinto português que passaria despercebido na prateleira de um supermercado, mas que se tornava harmonia pura quando confrontado, através das papilas, com o molho daquele peixe.
As putas, umas vinte, tomavam a mesa comprida. A maioria delas pediu cerveja. Jumenta, ao meu lado, quis beber cachaça. Mãe Ermínia acomodou-se à minha frente, do outro lado da mesa. Fazia observações bem-humoradas sobre suas meninas. Lembrava clientes, situações, viagens antigas. Uma família. Eu e o fotógrafo éramos os únicos homens do festim. Eu estava muito feliz, inclusive porque começava a ficar bêbado.
De repente, uma mulher de roupa normal, careta, parecendo mais secretária do que puta, apareceu na porta da sala e se dirigiu a Mãe Ermínia. Falou-lhe no ouvido. A Mãe virou-se para uma das meninas, vestido verde-esmeralda decotado, cabelos longos, boca carmim.
“Vai tu, Gisleide.”
“Quem é, Mãe?”
“O velho”.
“O polonês?”
“Ele mesmo. Vai logo. Senão mando outra.”
Depois fiquei sabendo: o polonês era um comandante sênior de fragata mercantil que só exigia das meninas alguma performance do tipo fashion: uma pose aqui e ali, pelada, um jeito romântico de mostrar os seios nus. Era um brocha, mas era lorde.
Gisleide voltou, feliz da vida, a tempo de alcançar a sobremesa, quarenta e cinco minutos depois, bendizendo o cliente.
“Ai, Mãe, se todos fossem como esse velhinho… Ainda me deu cem dólares…”
“Gisleide, olha o rateio!”, disse Mãe Ermínia rindo.
Torta de nozes, delícia de abacaxi, sorvete de creme artesanal: eu não conseguia distinguir o que era mais delicioso. Estava lambendo os beiços quando Mãe Ermínia esticou seu braço obeso e me tocou, do outro lado da mesa.
“Garoto, isto é o porto. Alegria e prazer.”
“Mas tem duas máfias, não tem? A dos patrões e a dos empregados?”
“Tem porra nenhuma”, disse Mãe Ermínia. “Tem uma máfia só, a máfia da humanidade. Cada um defende o seu, cada um pensa que fudeu o outro, e todos acham que fuderam a gente…”
“E não fuderam?”
“O mundo é um rio, seu jornalista. Nós todos somos levados pela correnteza, a caminho do Bem. E nós, as putas, vamos na frente. Somos as primeiras a ser fudidas.”
“Porque são mais puras”, eu emendei.
“Não, porque somos mais espertas!”, ela riu pra mim.
Neste momento, surgiu novamente aquela mulher que parecia uma secretária. Disse mais alguma coisa no ouvido da cafetina, que balançou a cabeça, afirmativamente.
“Condessa!”, gritou Mãe Ermínia, dirigindo-se à mais bela e bem-vestida profissional do jantar. “O coreano taí.”
“Caralho”, disse a Condessa. “Eu acabei de tomar o meu digestivo.”
“Pensa nas verdinhas”, disse Mãe.
“Já tou indo.”
Levantou-se, com muita graça, e passou bem próximo de nós, roçando o vestido longo, armado. Parecia, mesmo, uma personagem saída de um baile real, antigo.
“Há um problema com nosso jantar”, eu disse a Mãe Ermínia. “Ele é muito interrompido.”
“Você também não interrompe o seu domingo para cobrir incêndio?”, ela perguntou, esperta.
“É verdade. Interrompo sim.”
“Pois é. Trabalhador sofre.”
Condessa voltou, uma hora depois, com cara de nojo, e bebeu mais alguns digestivos. Outras meninas foram e voltaram. Jumenta ficou bêbado e dormiu com o rosto enfiado no meio dos braços, apoiados na mesa. Eu acabei a noite confessando a Mãe Ermínia que estava na missão errada: para mim, a putaria merecia uma reportagem muito mais rica e profunda do que aquela difusa “máfia do porto”.
“Quer saber de uma coisa?”, perguntou a cafetina. “O cara que te encomendou isso nem sabe do que está falando”.
“A senhora tem razão.”
“Então volta pro jornal e fala que a máfia não só ameaçou você como disse que iria matá-lo, também.”
“Matar a quem, também?”
“A ele, ao teu chefe. Ele vai desistir da reportagem na hora. Deve ser um cagão.”
“Deve ser, não. É um cagão! Mãe Ermínia, vou lhe dizer uma coisa: a senhora é um gênio! Esta é, realmente, a melhor saída.”
No dia seguinte, contei a Jumenta que um homem com uma cicatriz na testa me havia procurado no jantar das putas e me feito ameaças. A mim, a ele, Jumenta, e ao chefe.
“Então, caralho, vamos cair fora daqui já!”, tremeu o fotógrafo.
Antes de sair, dei uma passada pelo puteiro e procurei meu ídolo. Para agradecer e me despedir. De dia, Mãe Ermínia perdia um pouco do seu poder, fisicamente: parecia apenas uma senhora gorda. Mas, olhando bem, ela não perdia, refletida no rosto, a luz da genialidade. Eu iniciara, naquela época, uma das melhores amizades da minha vida. Ninguém jamais entendeu por que, de vez em quando, eu viajava sozinho para visitar uma velha amiga, “uma senhora muito requintada que mora perto do mar”.

Do livro “Allegro” – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003

A doidinha tinha pouco mais de quarenta anos, era magra de dar pena, cabelo escorrido, muito negro, repartido ao meio no centro exato da cabeça. Era impressionante a precisão daquele repartido, e eu cheguei a usá-lo como argumentação de que sua loucura só poderia ser relativa, já que maluco algum teria o rigor e o capricho para tratar o cabelo daquele jeito. Naturalmente, minha argumentação não resistiria à lógica primária.
A doidinha era a grande atração do bairro, quando nós chegamos. Um lugar de classe média baixa, no entanto pretensioso, com supermercado e um pequeno shopping center que tentava imitar os do centro. No final do ano, o bairro inteiro se esmerava com suas árvores de natal coloridas, e acontecia uma ‘gastança de energia sem sentido’, como meu pai definia a extravagância.
Os moradores eram tão ciosos do seu pedaço que tentaram, certa vez, mudar-lhe o nome de ‘Rio Velho’ para ‘Rio Dourado’. A justificativa para o ‘dourado’ eram os raros ipês–amarelos que enfeitavam as margens do córrego sujo que atravessava o lugar. Mas o presidente da Câmara de Vereadores, um professor culto, acabou dando uma grande lição às comissões de moradores, demonstrando que o conceito de ‘velho’, quando dado a acidente geográfico ou agrupamento humano, possuía, ele sim, um charme aristocrático, ao contrário do plebeu ‘dourado’, que não passava disso mesmo, uma imitação de quinta categoria do bom e ‘velho’ ouro. O nome não foi mudado, mas o professor perdeu boa parte dos votos do bairro na eleição seguinte.
Não se podia negar que a nobreza estava longe de chegar ao comportamento daquela gente metida. Era o caso da doidinha, por exemplo. A diversão preferida dos garotos do lugar era jogar-lhe pedras, nas duas vezes do dia em que ela, com seus vestidos longos, impreterivelmente negros, apesar de puídos e desbotados, ia até a padaria para comprar leite e pão quente.
Eu completara dezessete anos, na época, e meu pai nos avisara, a mim e ao meu irmão, um ano mais novo, que teríamos de exercitar a paciência: em função de perdas nos negócios, ele seria obrigado a baixar o padrão, e por isso viveríamos por algum tempo naquele arraial presunçoso.
“Jamais se envergonhe do que Deus lhe dá, Mauro Sérgio!”, ralhava minha mãe com meu pai, de dedo em riste, imaginando que ele sofria muito com a queda de status. Minha mãe era uma católica progressista, humanista, compassiva, talvez um pouco autoritária. Sempre trabalhara como professora primária do governo, salário miserável, e justificava-se dizendo que o futuro poderia ser tão negro que seus ganhos humílimos nos impediriam de passar fome. Essa ideia nos tornara inseguros com relação aos negócios do pai.
Eu herdara a compassividade da minha mãe, mas Rio Velho (ou Rio D’ouro, como eu e meu pai chamávamos, zombeteiros, depois da campanha ridícula da mudança de nome) não era o meu lugar. Não pelo aspecto econômico, evidentemente, mas moral. Os pequenos burgueses mostravam-se, na verdade, muito mais intolerantes, racistas e preconceituosos do que os liberais do nosso antigo bairro, Boa Vista, este sim, senhorial, como meu pai enchia a boca para dizer, onde moramos durante boa parte da vida.
Ali, em Rio D’ouro, meus eventuais amigos, adolescentes por volta dos dezessete anos, vinham, além de bisbilhotar nossa família, convidar-nos para programas absurdos, como jogar pedras em uma pessoa. Pior: já haviam feito João, meu irmão mais novo, experimentar aquela emoção medieval.
“Mas péra aí”, eu disse a Sizeno, o garoto que parecia o chefe da gangue do bairro, e que me convidou para a lapidação, “esta senhora fez mal a alguém?”.
“Não é uma senhora, é uma doida!”
“Fez mal ou não?”
Aí meu irmão interferiu e fui obrigado a mandar-lhe calar a boca, não só com a minha autoridade de mais velho, mas impondo-lhe meu físico, superior ao dele.
“O Célio é assim mesmo, Sizeno”, havia dito meu irmão ao pequeno marginal. “É cheio de penas das pessoas.”
“Seguinte, Sizeno”, eu continuei, depois de mandar João ficar quieto, “não é uma questão de ter pena de ninguém, é que o apedrejamento está fora de moda há cerca de dois mil anos”.
O rapaz não percebeu a ironia, e passou a acusar a doidinha de querer se aproveitar, sexualmente, de meninos e meninas.
“Quem acusou?”, eu perguntei.
“Ué, a molecada.”
“Você sabe que crianças mentem, não é mesmo, Sizeno? Não quero afirmar que estejam mentindo, mas a tal doidinha precisa do benefício da dúvida, pelo menos.”
“Crianças não mentem, ô seu bonzinho”, disse Sizeno, meio irritado. “Deixa pra lá, eu só quis lhe mostrar o bairro, e lhe chamar para uma coisa que todo mundo por aqui faz.”
Foi aí que tomei uma atitude que poderia ter-me custado até a vida, como meu pai observou, mais tarde. Em compensação, ganhei definitivamente o respeito da minha mãe, que me garantiu: “se precisar de um soldado, conte comigo”.
“É o seguinte, Sizeno: se eu souber que alguém atirou pedras na tal mulher, que eu nem conheço, não vou chamar a polícia, pois não tenho vocação de dedo-duro, mas fique certo de que vou atrás de um advogado para defendê-la. Ela não pode ser julgada e condenada por vocês.”
O chefe da gangue não disse nada. Simplesmente deu as costas. João ia atrás, mas segurei-o pela gola. A partir daquele dia, apenas as crianças menores ameaçaram apedrejar a doidinha. Sizeno havia entendido que sua liderança se dividira. E o povo do bairro acabou ficando do meu lado, pois arruaceiros, como Sizeno, atraem viaturas policiais; ‘coisas de favela’, para eles. Depois, pensaram bem, gente fina não joga pedras. Em nada. Em ninguém.
Mas eu precisava conhecer aquela que seria, na verdade, minha primeira cliente, antecipando todo o meu futuro de advogado de presos políticos e fundador de partido de oposição.
A casinha, simples, ficava no alto de um outeiro. Havia flores na pequena varanda, além de uma cadeira de balanço de palhinha, bonita, antiga, e gatos por todos os lados. Bati palmas. Ninguém atendeu. Mas percebi que havia um furo na porta, logo acima da fechadura. ‘Está me observando’, pensei. Esperei um tempo. Nada. Bati de novo. Só os gatos se mexiam, preguiçosamente, na varanda. O maior deles acomodou-se na cadeira, como quem reafirma prerrogativas. Esperei um tempo e resolvi falar alto.
“Senhora (eu nem sabia o nome dela), eu sou um amigo! Vim conhecê-la porque acabei de chegar ao bairro. Nem todo mundo, a senhora pode acreditar, está a fim de lhe jogar pedras!”
Esperei mais ou menos um minuto e ela abriu a porta. Havia molhado o cabelo (ou tomado banho?) e o vestido negro parecia impecável, passado, apesar da sua desvanecida pobreza. Senti (que ironia, para Rio D’ouro), um jeito aristocrático na sua figura. Ela disse, muito séria, com voz bonita, de atriz:
“Maria Feliciana Abreu de Carvalho, filha de Roque Cintra de Carvalho e Rosângela Flores de Carvalho.”
Estranho, aquilo. Como se fosse entrevistada por autoridade policial. Era, também, uma forma de entregar-se completamente a um intruso.
“Dona Maria Feliciana…”, eu fui dizendo.
“Feliciana. É mais simples. Abra o portão, entre. Quando era pequena, meus pais me chamavam de Feliz”, ela sorriu. Dentes pequenos, escuros.
Serviu-me chá preto com bolachas murchas. Era o que tinha de melhor. Fiquei sabendo, em pouco tempo, que a casa era paga por um irmão, quase seu vizinho, que morava num casarão próximo, um dos maiores do bairro. O irmão tinha vergonha dela: proibia que ela o visitasse e revelasse o parentesco. Ela o fazia comigo, no entanto, porque vira em mim ‘um olho honesto’. Feliz recebia uma mesada semanal (“antes era mensal, mas ele achou que eu jogava fora o dinheiro, por ser louca; não sou, é que o dinheiro era curto, mesmo”); mas a pequena pensão acabava dando, sem folga, para seus míseros gastos, como os dois pães e o litro diário de leite.
A casinha, por dentro, era limpa, apesar de certo odor abafado de velhice. Tinha duas salas, um quarto, um banheiro e uma cozinha. Nem tão pequena assim.
“E o que a senhora faz, dona Feliz?”, eu perguntei, após ter-me apresentado, falado da minha família e dos meus sonhos.
“Estudo os gatos. Só isso. Não posso trabalhar porque sou louca.”
“Mas quem disse que a senhora é louca?”
“Os médicos.”
“E por quê?”
Ela fez um ar de resguardo, olhou de lado e não me encarou.
“Meu comportamento.”
“Não precisa me dizer mais nada, dona Feliz. Só quero ser seu amigo. Seu comportamento não me interessa. Não gosto que joguem pedras na senhora.”
“Acho que me jogam pedras justamente por causa do meu comportamento”, ela sentenciou, para depois ponderar: “mas o que eu faço, de vez em quando, é porque não consigo parar”.
Reparei, naquele momento, que rugas simétricas enchiam sua testa, como se ela vivesse em estresse permanente. Aparentava a idade que me disse ter, quarenta anos, mas ostentava um ar envelhecido, que nada tinha a ver com o físico.
O que ela fazia? Atacava, sexualmente? Escandalizava os meninos? Ou as meninas? As acusações de Sizeno eram vagas e genéricas, não mereciam crédito. Depois dessa primeira visita à doidinha, perguntei a outras pessoas, que já tinham ouvido falar das suas intromissões sexuais, mas ninguém conhecia qualquer ‘vítima’.
Agora ela estava ali, frágil, entregue, à minha disposição. Sorriu algumas vezes, com timidez. Resolvi, naquele dia mesmo, aprofundar-me na história dos gatos. Que fazia mesmo? Observava-os? Ela me trouxe um monte de cadernos escolares em que, numa letrinha miúda, descrevia o comportamento de cada um deles. Li aquela coletânea, fascinado: ela atribuía a cada bicho sentimentos humanos, como ciúme, inveja, generosidade. Eram peças de ficção. Cometia alguns erros, escrevendo, mas havia até certa elegância no seu texto.
A partir daquele dia, nunca mais jogaram pedras na doidinha. Mesmo os moleques menores. Eu a visitava pelo menos duas vezes por semana, mas não a levei a minha casa, com medo de que ela se apegasse à minha mãe como se havia afeiçoado a mim, e passasse a nos visitar com insistência. A mãe já me havia pedido: “querido, eu quero ajudar a tal doidinha, mas você sabe que, além de trabalhar, tenho de tomar conta da casa; não tenho tempo, por enquanto, pra nada. Quando tivermos dinheiro para contratar alguém que me ajude, eu serei a primeira a visitá-la, também”.
Meu irmão João se afastara de mim, depois do incidente com Sizeno, mas recebera alguns conselhos para que não se ligasse à turma do bairro. Ele seguiu, obediente.
Enquanto isso, Feliz continuava sua vida, de ir até a padaria, duas vezes ao dia, e de observar os gatos, que já eram quinze. Houve uma época em que ela passou a comprar apenas um pão por dia, porque o dinheiro do irmão encurtara um pouco, e ela, além das refeições, precisava se vestir e comprar ração, a mais barata, para seus bichanos. Nesse tempo, emagreceu ainda mais. Eu já trabalhava no comércio e resolvi presenteá-la com boa parte da ração que os gatos consumiam. No começo não aceitou, chegou a ficar agressiva, insistindo que não precisava de esmolas. “Por que eu não posso colaborar um pouco, Feliz? Eu também os amo, e somos amigos.”
Aceitou, ‘por eles’. E voltou a comprar os dois pães diários. Houve um sábado em que ela parecia mais agitada, elétrica. Perguntei o que se passava, ela não respondeu. Sumiu no seu pequeno banheiro. Minutos depois saiu de lá com um roupão surrado, que já havia sido negro um dia, olhou para mim e o abriu, revelando sua esquálida nudez. O cabelo, ainda molhado, repartido no centro exato da cabeça. Tive de fazer um grande esforço para parecer natural.
“Acho você linda e muito atraente, mas não sou o homem da sua vida, Feliz. Um dia, seu homem chegará.”
Ela fez um gesto de impaciência, fechou o roupão, trancou-se no banheiro novamente e não mais retornou. Deixei passar uns três dias e voltei. Ela me recebeu, melindrosa, mas me convidou a sentar e respondeu com monossílabos a tudo o que lhe perguntei. Depois pediu desculpas pelo episódio.
“Você viu, Célio, era por causa desse comportamento que me jogavam pedras.”
E foi aí que percebi, definitivamente, que a loucura de Feliz era a de se mostrar nua, certamente para os meninos, nos dias ‘em que não consigo parar’. Mas, em três anos de amizade, aquela foi a única vez.
Meu pai não permaneceria por muito tempo sob humilhação financeira, e acabamos voltando para o bairro da Boa Vista. Na despedida, vi Feliz chorar pela primeira vez. Um choro muito contido, sutil. Só os doidos são capazes de chorar assim.
“Vão me voltar a jogar pedras”, ela disse, “quando você for embora”.
Eu a convenci que não. Há três anos não acontecia. As pessoas se haviam esquecido daquela infâmia. O chefe da gangue, Sizeno, sumira do bairro com sua família problemática.
Senti que não fora convincente. Voltava a Rio D’ouro, de vez em quando, para vê-la. Mas fiquei longe seis meses, fazendo um curso na França. Da última vez em que estivemos juntos, parecia sombria, falou muito pouco, achei que estava deprimida por causa de Haron, seu mestiço siamês de olhos verdes que morrera de velhice, uma semana antes. Haron, segundo os cadernos de observações, era um bipolar perigoso, capaz de alternar carinho com sadismo.
Passou-se mais um tempo, uns dois meses, e fiquei sabendo por alguém do bairro que ela morrera. Mas o crime acontecera há quinze dias. Feliz estava deitada na cama, onde provavelmente dormia, quando sua cabeça foi esmagada por um tijolo. Assim, a sangue-frio.
Estudante de Direito, pedi socorro a um dos meus professores. Queria que resolvessem o problema, e sabia que um pedido à polícia, vindo de alguém importante, um catedrático, por exemplo, apressaria a solução do caso.
Um mês depois, recebi a informação de que o assassino estava preso e já confessara. Era um garoto de dezesseis anos, Túlio Guedes, que eu até conhecera, bem menor e muito tímido, com o rosto coberto de espinhas. Túlio contara à polícia que a doidinha tentara violentá-lo.
Aí eu a vi, mais uma vez, dentro da minha mente, abrindo o roupão surrado, com sua nudez de campo de concentração. Lembrava-me da cena como se não fosse eu, mas o moleque Túlio. Posso imaginar o susto do garoto que, provavelmente, fugiu apavorado. Não consegui entender porque voltou, depois, e jogou-lhe um tijolo na cabeça. Aquilo o teria perturbado tanto assim?
Não cheguei a sentir raiva do rapaz. Preferi considerar que o mundo está sempre pronto a jogar pedras, todos contra todos, sob qualquer pretexto.

Do livro “Memórias Embriagadas” – Editora Noovha América, São Paulo, 2008.

Vi-o atrás de uma garrafa de cerveja, a umas quatro mesas, no fundo do bar. Era ele, sim, mas difícil de acreditar: sozinho, triste, mal vestido, barba suja, os olhos fixos na bebida que demorava a sorver, como se estivesse fora do mundo. Ainda há um mês havia lido uma reportagem extensa sobre os grandes foragidos do Brasil. A foto do Señor Ramirez era a maior. Falei baixinho para Galván, à minha frente, com medo de que, de longe, o bandido pudesse fazer leitura labial.
“Não olha, Galván, mas o Señor Ramirez está lá no fundo, tomando uma cervejinha…”
Galván apenas franziu a testa, continuou a bebericar sua Coca-Cola de alcoólico anônimo. Fazia muito calor naquele pedaço da fronteira e alguns homens no bar haviam tirado a camisa. Nós dois usávamos camisetas escuras, mas, se pudéssemos, andaríamos de cuecas. O Señor Ramirez parecia não sentir a temperatura absurda: vestia uma jaqueta jeans, velha e pesada, com uma camisa vermelha por baixo.
Passava do meio-dia. Boa parte daquela gente só sairia à noite do bar, amparando-se, cantando músicas em português e espanhol. Muito provavelmente, alguém encrencaria com alguém e levaria um tiro nos cornos. Era sempre assim, às sextas-feiras.
“Tem segurança?”, perguntou Galván, entre dentes.
“Aparentemente não”, respondi, excitado. “Atrás dele há uma mesa vazia e o pessoal que está na frente trabalha na construção do shopping…”
“Puta merda. Vou até o banheiro”, disse Galván.
“Dou cobertura.”
Eu tremia. Se o pegássemos, seria o meu primeiro grande caso.
“Não, fica aí, garoto. Só quero entender melhor.”
Galván era vinte anos mais velho e eu costumava atendê-lo. Às vezes me parecia meio porra-louca, até suicida, enfrentando de peito aberto umas situações-limite. Mas todos o consideravam um bom policial. Havia histórias de que dava proteção a uns comerciantes coreanos, que amaciava caminhões do Paraguai, mas tudo isso diziam de mim também, de todos nós. Éramos corruptos por definição. Eu não acreditava nas histórias que contavam sobre Galván. Estava de dupla com ele havia dois meses e não percebera nada.
Galván se levantou devagar, se espreguiçou, e tomou o caminho do banheiro lá no fundo. A essa altura do dia já não deveria estar dando nem para entrar no pequeno cubículo, sem pia e sem descarga. Um nojo, aquilo.
Eu me sobressaltei quando meu companheiro parou em frente ao bandido, curvou o corpo, pôs as mãos na mesa e lhe disse alguma coisa. De longe dava pra ver que o Señor Ramirez respondeu com rispidez. Galván fingiu que se dirigia ao banheiro. O homem me encarou com um olhar estranho e começou a mexer nos bolsos, procurando dinheiro, com certeza para pagar a conta.
Eu fiquei paralisado com a atitude de Galván, mas não podia fazer nada. Tudo muito claro: meu próprio colega fazia parte do esquema de proteção do Señor Ramirez. Deveria haver outros por ali; mas eu estava armado e tinha obrigação de prender o bandido e denunciar o policial corrupto – só que… teria alguma chance?
Quando Galván voltou, apenas nos olhamos. Eu disse tudo com meus olhos, mas ele baixou os dele e bebeu devagar um gole da Coca-Cola.
O bandido pagou a conta e levantou-se para sair. Passou ao nosso lado e pude sentir, vindo dele, um odor insuportável de suor seco. Algo me disse que eu deveria encará-lo e dar-lhe voz de prisão, fodam-se Galván e os outros guarda-costas por ali. Mas não me mexi. Continuei examinando o rótulo da garrafa de cerveja.
“Você não vai mudar o mundo”, disse-me Galván, quebrando o constrangimento.
Silêncio. Bebi um gole mais generoso.
“Eu entendo, Galván. Há quanto tempo o Señor Ramirez vive por aqui?”
“Dez anos. Todo mundo sabe, menos os novatos. Você é menino. Mas não é mais novato.”
Eu bebi uma dose maior, a cerveja fica quente muito rápido nessa porra de lugar. Respirei fundo:
“Quando crescer, Galván, vou ser que nem você? Como é que dizem mesmo? ‘Vivendo e deixando viver?’
“Vai. Vai ter medo de morrer, largar sua futura mulher, deixar seus filhos órfãos, vai querer comprar um videocassete que o salário não permite…”
“Não dava pra ser diferente, Galván?”
“Não. Faz calor demais neste lugar. A gente se larga. Viu o Señor Ramirez? Sozinho, relaxado, fedendo. Às vezes eu acho que ele está louco para ser preso – só para fugir da rotina, sair desta pocilga a quarenta graus.”
Muito discretamente, eu me cheirei nas axilas. Estava fedendo também.

Do livro “Allegro” – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003.

De um tempo para cá, Zeca Mindingo começou a sentir pânico só de pensar no pessoal da tevê chegando e provocando a maior confusão; a equipe com câmera, iluminador, repórter, invadiria a praça e o obrigaria a dizer qualquer coisa.
Aquela fora a melhor praça dos últimos anos: quieta, afável. Levantara sua tenda havia uns três meses e os vizinhos dos dois lados da rua (que casas lindas!) não reclamaram. Confirmando, aliás, sua teoria de que rico não enxerga o mundo, a não ser pela televisão. Só vê o que está muito perto, o que está dentro de casa, ou no escritório, ou no clube.
Não perceberam, os ricos, que um invasor refestelara-se nos seus jardins além-muro. Zeca Mindingo era um homem escuro, de barbas compridas, e há mais de dez anos vivia debaixo de uma tenda negra. Gostava de invadir as praças mais floridas, mais charmosas. Ninguém jamais o incomodou.
Mas, se os ricos adultos não o viam, seus filhos, aquelas crianças iluminadas (os filhos dos ricos são as criaturas mais bonitas do mundo!) que saíam para tomar sol na rua, além das babás, cozinheiras e arrumadeiras, não só o percebiam como se tornaram íntimos.
“Aí, tio, vai uma torta de limão?”
Que maravilha, torta de limão! Os ricos possuíam as melhores receitas. E, assim, dos empregados ele ia aceitando tudo: comida, roupa, santinhos com orações. Menos sopa. Esse é um problema que as pessoas têm, ricas ou pobres: imaginam que todos os mendigos devam tomar sopa. Sopa não é refeição de gente.
Mas a paz estava perfeita por ali. E ele, paranóico, inventando situações hipotéticas como esse pânico de televisão. “Será que é este o meu problema?”, perguntava-se. “Não consigo viver como um cristão normal?”
Parecia que estava vendo a repórter, toda produzida, mas suada, metendo-lhe o microfone na cara:
“O que o senhor acha de viver na rua, no meio de uma praça pública, comendo, dormindo, fazendo necessidades?”
“Não acho nada.”
“O senhor não quer me dar sua opinião? O senhor foi expulso de casa? Veio do interior? O senhor…”
Sentia-se muito mal só de pensar. Porque já acontecera uma vez. Dez anos atrás. E ele vivia tendo pesadelos com aquela tragédia. Não era um repórter de tevê, mas de jornal. Muito simpático, maneiroso. E inteligente. Olhou para ele e saiu-se com esta:
“O senhor está aqui, nesta situação, somente porque quer, não é mesmo?”
Bem, era uma pergunta óbvia. Todos os mendigos, especialmente os que moram nas ruas, estão ali somente porque querem. Opções, eles sempre teriam. Mas o repórter achara um jeito diferente de amarrar uma conversa.
Foi aí, na confiança, que Zeca Mindingo se perdeu. Contou tudo ao repórter. Infância no casarão, o pai querido, a mãe doente, os amigos estranhos, a impossibilidade de se fixar em qualquer estudo, ou em qualquer trabalho, quando virou rapazinho, as moças apaixonadas; mas prevalecia aquela vontade irresistível de tomar mundo, sair caminhando, vento no rosto, ensopado de chuva. Pedir e receber. E apenas olhar o mundo do lado de fora – o mundo que os ricos não viam –, degustando tudo o que ocorria à sua volta.
O repórter escreveu uma história linda e, logo depois, a tevê apareceu. Quase o obrigaram a entrar na perua, ele não conseguiu resistir; depois o violentaram com banho, barbeiro, spray contra piolho. Depois, no estúdio, um sujeito bichoso perguntou as mesmas coisas que ele já havia dito ao repórter do jornal.
Começou a chorar.
O viadinho: “Que é que você está sentindo?”
“Estou com muita pena de mim”, ele disse. “Muita, muita pena. Estou quase chorando de pena de mim. Mas sinto pena do senhor também…”
Zeca não admitia que isso se repetisse. Foi a pior sensação da sua vida: sentir pena de si mesmo. Foi acordado do delírio por uma voz dulcíssima, sua conhecida.
“Zequinha, vai dormir mais um pouquinho hoje?”
Era Fernanda, a adorável babá da mansão azul em frente, protegida por guardas de metralhadora – e de piscina térmica no subsolo, segundo comentavam. Fernanda mais parecia a própria felicidade, na sua roupa branca, engomadíssima, uma exigência dos patrões. “Daqui a pouco lhe trago umas paçoquinhas de Minas”, disse ela, com o sorriso também branco.
“Nanda”, disse Zeca Mindingo, subitamente mais jovem, “meu dia estava mais ou menos; agora ficou perfeito…”
“Você não existe, Zeca…” A blusa do seu uniforme ostentava um decote em V quase generoso.
“Eu sei disso, Nanda. Eu sei que eu não existo.”

Do livro “Allegro” – Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2003.

“Geralda, sabe, não quero que você me leve a mal, mas acho que deveríamos sair desta recepção. O que nós estamos conversando não bate com os assuntos grupais daqui. Nosso assunto é sério. Mas não vamos sair assim, dois gerentes juntos, vai dar na vista; amanhã já viu, né, a fofocalhada. Vamos fazer assim: você sai antes, depois eu dou um jeito, e a gente se encontra no Bar do Ruço. Tá aqui um cartão dele. Tem estacionamento com manobrista.”
Técnica simples de afastamento de grupo. Umas doses no Bar do Ruço e, depois, cama. Ela tem jeito de quem sobe pelas paredes.
“Tá bom, Nércio, vou com você, o papo está legal, e eu queria saber um pouco mais desse livro do Milan Kundera que você leu. Como é mesmo o título?”
Finjo que não entendo a jogada. Esse Nércio deverá substituir o gerente-geral Arthur, que vai se aposentar. Deve estar confiante, o ego inflado. Mas estou interessada, mesmo, no tal do Milan Kundera.
“Gostou do Bar do Ruço, querida? O Ruço é ruço mesmo, meio sarará. Você achava que era russo com dois esses, não? Todo mundo pensa que ele é lá da antiga União Soviética. Mas é cearense. Olha, se você sentir muito frio, eu peço a ele pra diminuir o ar. O Ruço é supimpa. Vamos beber umas doses. A minha garrafa está aqui, guardadinha. Com meu nome. E o lacre, que eu mesmo pus, ah.”
Estou lhe tocando o braço (tive a impressão de que ela se arrepiou), quase que todo o tempo, e ela não retirou a minha mão, não reclamou.
“Ô Nércio, você manda aqui neste terreiro, né mesmo? Regula o ar-condicionado, guarda a garrafa de uísque. Veja só: bem escurinho, friozinho, para que um agasalhe o outro, e bebam mais um pouco para esquentar… E você já está me tocando, tudo bem, é um toque leve e respeitoso, mas é toque.”
Homem não inova mesmo. É sempre a mesma cantada. Ou piso no freio agora ou em meia hora este cara estará me metendo a mão pela blusa, amassando meus peitos.
“Geralda: tenho duas coisas para lhe contar, uma boa e outra ruim. Eu sabia que você ia querer a ruim primeiro. Ah, antes de falar essas coisas… você quer provolone à milanesa ou iscas de filé? O filé é legal, vem sem cebola, fique tranqüila. Aqueles salgadinhos lá da empresa são um horror, sempre. Acho que o cara lá do Pessoal, o Joca, ganha uma comissão da doceria… Bem, a coisa ruim, então, é a seguinte: eu não li o tal do Milan Kundera. Queria impressionar você. Sabe, venho observando você há muito tempo. Seu jeito de resolver os problemas, suas preocupações sociais. Observação humana, essencialmente humana. Todo mundo diz que mulher gosta desse cara, Milan Kundera. De onde ele é mesmo? Cubano? Ah, a boa, agora: eu não vim aqui com você pra lhe tocar, mesmo que seja com respeito; estou cansado de mulheres fáceis, você é diferente, é a sua alma que me chama a atenção, não repare o que eu digo, sei que é careta, talvez porque eu seja mesmo careta, mas a sua alma é linda.”
Recuo estratégico. Se ela continuasse com aquele papo de “já está me tocando”, esta merda iria acabar com um discurso feminista. As mulheres enlouqueceram mesmo. Antes gostavam de ser levadas no bico. Se excitavam com isso. “Me engana que eu gosto.”
“Pensando bem, Nércio, eu não sei o que a gente veio fazer aqui. Sinceramente. Eu estava interessada no Milan Kundera. E você, queria o quê?”
Corte brusco na enrolação. Cara-de-pau. E apelativo. Daqui a pouco vai dizer de cara lavada que a bunda da minha alma é o maior tesão.
“Geralda: você fez o curso de ‘Gerência Participativa’? Viu o que o conferencista carioca, o cara que fez ginástica no palco, falou sobre o ‘vício da descomunicação’? Lembra, ele explicou, ‘vou usar uma palavra que não existe, descomunicação – é que nós estamos viciados em dizer as coisas de uma maneira enviesada, evasiva, às vezes negando o que gostaríamos realmente de dizer; isto é descomunicação.’ Pois bem, Geralda: não vamos deixar que aconteça conosco – minha querida! Se estamos aqui é porque gostamos um do outro. Com limites, é claro. A nossa amizade está além do puro coleguismo, e aquém de uma situação, digamos, de alcova.”
É preciso, a todo custo, trazer a conversa para um patamar seguro. Ela poderia abrir um pouco a guarda, o uísque fazer efeito, pô.
“Olha, em matéria de descomunicação, o mestre é você, Nércio, e não aquele carioca de peruca. Desde que chegamos aqui, você só descomunicou.”
Encurralar o puto. Vai ter de dizer que só quer me comer. Me enganou, pensei mesmo que tinha lido o Milan Kundera. Gervásia chorou demais quando leu um romance do cara. Se encontrou numa personagem.
“Não sei mais o que dizer… Sabe, Geralda, na hora em que chamei você para cá, uma luz se abriu na minha mente. ‘Enfim, meu Deus, uma conversa inteligente nesta empresa’, eu pensei…”
“Olha, Nércio, chega! Você não está aqui a fim da minha inteligência. E muito menos da minha alma. Você quer é me comer. E eu não estou a fim de dar. Então, vamos parar de descomunicar, tá entendendo? Eu vim porque senti a possibilidade (veja bem: possibilidade) de você ser um papo legal, literário, de a gente trocar realmente umas idéias; idéias de fato, sabe, do mundo virtual, e não se enfiar um no outro como todo mundo faz por aí o tempo todo…”
“Você queria que eu lhe pedisse em casamento, princesa?”
“Princesa o caralho. Com a merda que você ganha, iria casar como? Com quem? E quer saber? Duvido que você vá substituir o gerente-geral Arthur. O Fernandão está muito mais preparado do que você. Emocionalmente, você é uma criança, ou melhor, um deficiente. Me arrastar até aqui pra me falar um monte de merda… Também a culpa é minha, eu vim…”
“Está falando alto demais, Geralda. Estão olhando. Vamos embora, vou pagar a conta.”
“Não vai pagar nada. Vamos dividir.”

Do livro “O Homem dentro de um Cão”, Editora Terceiro Nome, 2007

Uma figura: pequenina, enrugada, elétrica, a voz estridente, dizia pra todo mundo, com orgulho injustificável, que possuía uma altura rara: um metro e cinqüenta e cinco. Gostava de vestidos alegres, de cores fortes, ostentando flores em geral miúdas. Era um “anexo” da nossa família, como João Paulo, nosso irmão mais velho, a definia. Porque não era parente dos nossos velhos pais. Fora herdada junto com o espólio da avó Nicéia, mãe da minha mãe, que morava longe e proibia que a visitassem. Teria sido uma espécie de dama de companhia da vovó maluquinha, mas nem disso tínhamos certeza. Nosso pai conta que, quando foram pegar os móveis na casa da avó Nicéia, a figura, que atendia pelo nome de Zefinha, estava sentada na cadeira de balanço centenária, toda ansiosa, os olhos muito vivos, querendo saber para onde iria e que espaço ocuparia.
“Cuidei de Nicéia durante trinta anos”, ela disse, naquela ocasião. “Perdi a minha mocidade, deixei de casar, mas cumpri a minha missão. Ela morreu toda linda, bonitinha, asseada, somente porque parou de respirar. Milagre, também, não faço.”
Perplexos, nem o pai nem a mãe disseram nada. Mas a figura insistiu:
“E agora, onde vão me enfiar? Num quarto? Numa cama ao lado de algum menino? Vão fazer um puxado no quarto da empregada? Ou aumentar a casa do cachorro?”
O pai, sempre muito calmo, respondia que esperasse um pouco, só um pouco, que a resposta lhe seria dada.
Assim, Zefinha entrou lá em casa, pela primeira vez, cheia de razão. Contrariada. Eu era criança de uns seis, sete anos, e me lembro dela andando de um canto para outro, a perguntar “e eu, onde fico?” Também jamais esqueci de como eram viçosas, quase reais, as margaridas do seu vestido. Imagino, hoje, que aquela seria sua melhor roupa.
A casa era grande, mesmo, tinha oito quartos. E um deles, próximo da cozinha, o nosso preferido, pois era ali que se guardavam as bolas de futebol, os tênis velhos, os brinquedos antigos que sempre nos traziam as melhores recordações. Éramos seis irmãos, todos homens, com a diferença de dez anos do mais velho para o mais novo. E ficamos desarvorados quando soubemos que nosso espaço extra iria desaparecer para virar um quarto de hóspede. Meu irmão Daniel, mais velho do que eu, resolveu protestar publicamente e, além de levar um safanão da mãe, ganhou uma inimiga pelo resto da vida. Zefinha jamais o perdoou.
Na verdade, o mistério não era apenas Zefinha, quem era e de onde surgira, mas a própria avó Nicéia, sempre isolada, reservada, quieta. Ela apenas nos suportava, seus únicos netos, quando a visitávamos, juntos, para levar-lhe o presente de cada Natal. Somente minha mãe a via, durante o ano, mais ou menos a cada dois meses. Aliás, a família materna era muito diferente da família do pai, italiana, festiva, emotiva, alegremente confusa.
Por isso não sabíamos direito das origens de Zefinha. Segundo a mãe dizia, ela sempre estivera lá, na casa da avó Nicéia, pajeando-a com devoção, apesar de não parecer tão mais nova assim, e, quem sabe, não seria uma meio-irmã, filha bastarda do nosso bisavô materno que, segundo consta, era o maior galinha que a cidade já vira?
Mas Zefinha viera para ficar e, apesar de reivindicar, todos os dias, sua condição de aposentada, após “trinta anos, dia e noite cuidando de Nicéia”, fora a melhor coisa que acontecera na vida da minha mãe. A casa, desestruturada pela agitação dos seis rapazes (às vezes, jogávamos futebol até na sala de visitas), transformara-se, em pouco tempo, num reduto alemão. Zefinha pusera ordem marcial na bagunça, demitira empregadas, lavadeiras e passadeiras, chamara a atenção de todos nós, meu pai inclusive, para erros primários que cometíamos nas nobres artes da organização e da convivência. Melhor: ela conseguira pôr um fim ao desperdício geral, obrigando a cozinheira a fazer apenas a comida que seria consumida, cortando o excesso de refrigerantes e de gorduras. Sua vocação de administradora era simplesmente inacreditável.
No começo foi duro para todos nós, mesmo porque a figura ganhou as graças dos nossos pais, eles próprios incapazes de conviver com limites. Lembro-me bem que meu pai só reagiu na hora em que Zefinha tentou se meter no seu orçamento pessoal.
“Não tem sentido ficar comprando esse monte de revistas que você não lê”, ela lhe disse, um dia, indignada.
“Olha, Zefinha, com todo respeito, você tem o direito de mexer em noventa por cento das peças desta casa, mas nas minhas revistas ninguém se mete.”
Ela entendeu. A gente percebia que, do seu jeito enviesado, ela amava meus pais tanto quanto amara a avó Nicéia. E, quanto a nós, vivíamos em permanente tensão, tentando esconder dela nossos pequenos pecados, como o de roubar frutas do próprio quintal, coisa que Zefinha jamais permitira. “Aqui, consome-se a quantidade certa de frutas; por isso só se colhe o que se come. Se é para jogar fora, vamos dar aos pobres”, repetia, e nós odiávamos os raciocínios exatos do “anexo”, mesmo sabendo que, no fundo, ela tinha razão.
E assim o tempo foi passando, meus irmãos mais velhos casando, viajando, a casa cada vez maior, nossos pais envelhecendo e Zefinha com a mesma disposição do seu primeiro dia conosco. Ninguém sabia direito a sua idade, calculávamos setenta e sete ou até oitenta anos. Claro, ela já perdera boa parte da sua agitação física, quase ficara cega de catarata e só aceitou ser operada após um tombo que lhe quebrou um braço. Meu pai, com menos de setenta, parecia muito mais frágil, cheio de achaques, baixando hospital de vez em quando.
Certo dia, quando só estávamos meus pais, Zefinha e eu na casa imensa, ela nos comunicou, durante o jantar, com uma certa pompa, que de “amanhã à meia noite eu não passo.”
“Não passa, como?”, perguntou minha mãe, distraída.
“Ué, vou dessa para melhor.”
“Zefinha, você marcou a hora de morrer?”, riu meu pai.
“Deus marcou. Mas eu fui avisada.”
Ninguém se animou a perguntar como e o jantar transcorreu num constrangido silêncio. Eu imaginei que ela estivesse caducando, finalmente.
O dia seguinte aconteceu como qualquer outro, Zefinha administrou a cozinha, a copa e a roupa lavada; ainda deu um esporro no jardineiro, que deixara de aparar umas roseiras. Às dez da noite, após a última novela, ela se recolheu ao mesmo quarto que fora, uma dia, nosso amado depósito de bolas e brinquedos e que acabara por se transformar, com algumas reformas, numa confortável suite, em homenagem à Zefinha; tinha até televisão grande e ar-condicionado.
Mais ou menos às onze e meia eu não resisti e fui dar uma olhada, pela clarabóia, pra ver o que acontecia lá dentro. Então a vi, deitada com uma camisola florida (pareceu-me miosótis, de longe e no escuro), as mãos no peito segurando o que seria a pequena bíblia que costumava ler, apesar do tamanho mínimo da letra e de jamais termos sabido qual a sua verdadeira religião. Duas velas, no criado-mudo, iluminavam o ambiente. Estava de olhos abertos, mas de vez em quando os fechava e parecia balbuciar alguma coisa pelo movimento da boca.
Fiquei muito tempo olhando para ela e para o meu relógio, até que me cansei da posição na escada. Ela parecia ter adormecido. Já passara da meia noite.
No dia seguinte, acordei angustiado, antes das seis da manhã, hora em que Zefinha se levantava e começava a trabalhar. Quando cheguei em frente ao quarto dela, meus pais já estavam lá, tão aflitos como eu, os olhos fixos na porta.
“Vamos esperar até umas seis e pouco, depois a gente entra”, disse meu pai, muito sério.
Mas, pouco antes das seis, a porta se abriu e o nosso “anexo” foi saindo com sua roupa de trabalho, cabelo molhado, e a expressão do rosto revelando um mau humor inédito.
“Nenhum de vocês vai fazer qualquer comentário”, ela disse, para o nosso alívio e felicidade. E completou: “Nem agora, nem nunca!”

Do livro “O Homem dentro de um Cão”, Editora Terceiro Nome, 2007